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Cinderela e A Bela Adormecida dos contos de fada aos filmes de
animação
1.1
A origem dos contos de Cinderela e A Bela Adormecida
Presentes originalmente na coletânea de contos Histoires ou Contes du temps passé
[Histórias ou Contos do tempo passado], publicada em 1697 e escrita por Charles Perrault,
as histórias atualmente conhecidas como Cinderela e A Bela Adormecida foram
primeiramente intituladas Borralheira ou A chinelinha de cristal e A Bela Adormecida no
bosque.
Fazendo um recuo temporal para entender mais amplamente a publicação de
Perrault que daria origem aos filmes da Disney Cinderela e A Bela Adormecida, é
interessante compreender o contexto e história de vida do autor francês. Perrault, nascido
em 1628, veio de uma família burguesa bem situada. Filho de um advogado no Parlamento
de Paris, Perrault desde cedo foi afeito aos versos e debates. Formado inicialmente em
Direito, Perrault realizou tradições paródicas de grandes obras da Antiguidade Clássica –
livro VI da Eneida e Les Murs de Troye. A pedido de seu irmão Pierre, passa a trabalhar
ajudando nas finanças de Luís XIV, ao mesmo tempo em que frequentava salões literários.
Em 1663 é nomeado primeiro encarregado das edificações régias e em 1671 ingressa na
Academia Francesa. Tendo experiência numa gama variada de atividades, na década de
1660 Perrault possuía papel essencial na política das artes e ciências da época,
contribuindo na afirmação do poderio da monarquia absoluta de Luís XIV.
Dentro da Academia, Perrault atuou na modernização e fixação da ortografia da
língua francesa. Tendo dedicado parte importante de sua vida à escrita, suas obras que
ficariam mais famosas foram os contos, cuja autoria Perrault atribuíra primeiramente ao
filho, Pierre Darmancour, numa tentativa de fugir de polêmicas. De fato, parece ter havido
uma colaboração entre pai e filho: enquanto Pierre teria recolhido as histórias junto a amas
e as escrito, o pai teria redigido as morais, que eram anexadas ao final dos contos.
Benedetti (2012: 11) destaca que não é possível falar em 'contos de Perrault' propriamente
ditos, uma vez que as histórias não foram inventadas pelo francês, mas sim coletadas da
tradição oral e fixadas por escrito. O que se pode atribuir como criação de Perrault são
justamente suas morais inseridas após os contos. O próprio Perrault, à época, não percebia
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suas transcrições dos contos como componentes de uma obra pessoal – lembremos que
naquele período as elaborações artísticas não eram entendidas a partir da concepção de
genialidade criativa, que viria a ganhar espaço posteriormente (BENEDETTI, 2012: 10).
As histórias escritas pelo autor, como já dito, eram contadas oralmente, na forma de
narrativas populares. Ao passarem da oralidade para o âmbito da escrita, acabam
naturalmente perdendo mobilidade, entretanto, Benedetti (2012: 11) destaca que Perrault
prezou pela manutenção de determinados traços formais das narrativas orais, tais quais as
repetições de falas ritmadas, de expressões cotidianas, a presença constante do humor e o
fundo maravilhoso, fantástico, que envolvia as narrativas. Cabe ressaltar que o maravilhoso
encontrado naqueles contos possui uma origem pré-cristã, como era característico na
literatura francesa mais amplamente. Nesse sentido, Perrault inseria-se numa tradição
muito forte de valorização do patrimônio e língua franceses, independente de influências
externas, como o ideário eclesiástico-cristão e a admiração exagerada da cultura clássica
antiga.
Apesar de os contos não terem sido inventados por Perrault, a forma como o autor
fixou as narrativas carrega roupagens, costumes, conceitos e preconceitos do século XVII,
contexto em que foram escritas (BENEDETTI, 2012: 13). Essencial notar que os contos
publicados por Perrault não eram direcionados às crianças, mas sim aos adultos, que
compartilhavam tais histórias em conversações nos salões parisienses. Os contos, assim
como as lendas e fábulas, eram tidos como gêneros relacionados ao público feminino,
enquanto tragédias, epopéias e crônicas destinavam-se aos homens. Estes gêneros
vinculados às mulheres, apesar da popularidade, eram tidos como inferiores, e Perrault teve
que defender o tipo de literatura que propagava, frente às inúmeras críticas. O autor
justificava a leitura de seus contos a partir das morais que anexava ao final das histórias –
declarava que tais morais, atreladas às narrativas leves, eram tão capazes de edificar quanto
as obras mais sisudas, relacionadas à cultura bíblica cristã.
Esse tipo de literatura praticada por Perrault teria relação mais ampla com o papel
importante desempenhado pelo autor na chamada querela dos antigos e dos modernos, na
qual uma parcela dos intelectuais venerava a tradição clássica e outra parcela, oposta,
rechaçava esse hábito e propunha novas perspectivas para o campo da cultura
(BENEDETTI, 2012: 15). O principal representante dos antigos, naquele contexto, foi
Nicolas Boileau-Despréaux, que defendia a monumentalidade da Antiguidade Clássica,
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assim como a normatização no presente dos modos antigos de produzir artes plásticas e
literatura – isso incluía a mistificação do passado clássico e a permanência do Latim como
língua superior. (BENEDETTI, 2012: 15-6) Já no lado oposto da querela, havia os que
acreditavam que a França monárquica do século XVII encontrava-se tão esplendorosa
quanto a Antiguidade, sendo capaz de rivalizar, por exemplo, em termos de personalidades
importantes e feitos. Nesse grupo dos modernos, Perrault exerceu papel fundamental,
defendendo a liberdade e variabilidade para além dos cânones clássicos: não achava
essencial conhecer a língua original dos escritos, não defendia a hierarquização de gêneros
artísticos e apelava para o gosto do público leigo, que num geral encarava a arte pelo
âmbito do divertimento e passatempo (BENEDETTI, 2012: 17-8).
Como já citado anteriormente, Perrault costumava incluir, ao final dos contos que
escrevia, determinadas lições que poderiam ser assimiladas por meio das histórias.
Benedetti (2012: 19) ressalta que essas morais eram direcionadas ao público feminino – o
que faz muito sentido, lembrando que as mulheres eram seu principal público leitor. Na
publicação dos Contos de Mamãe Gansa, a maioria das histórias têm duas morais anexadas
ao final, sendo a primeira mais alinhada às concepções dominantes em sua época e a
segunda mais irreverente.
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