Bela Adormecida e suas versões originais, é o maniqueísmo acentuado entre personagens.
Em Cinderela, esse processo é observável entre a menina que intitula o filme e sua
madrasta e irmãs – as quais, na animação, ganham contornos mais perversos e detalhados
do que no conto escrito. Este abismo entre personagens acabou virando um recurso usado
com frequência pelos estúdios de Walt Disney em suas animações. No caso dos filmes que
apresentam contos de fadas, este recurso foi usado, por via de regra, para separar as vilãs
das princesas, tornando essas últimas objeto de identificação quase que imediato aos
espectadores dos filmes. Como defendido por Pierre Sorlin (1994), as imagens possuem
um grande apelo emocional e, no caso da reação emocional provocada naqueles que veem
a imagem – ou o filme –, é importante destacar que estas reações afetam o modo como o
espectador interage com a história que está sendo contada, assim como transporta para sua
vida as percepções geradas pelo contato com tal arte. Considerando que o público-alvo
desses filmes foi formado comumente por jovens e crianças do sexo feminino, a
identificação com as princesas é algo que acontece de forma rápida e bastante eficaz. É
possível dizer que o maniqueísmo simplifica a personalidade dos personagens envolvidos,
no caso, as mulheres, as quais são separadas dentro da narrativa como boas, ou más, sem
grandes complexidades.
Levando em conta o contexto específico de criação e produção das animações
Disney, também é fundamental salientar as hierarquias de gênero presentes nos bastidores
dos estúdios Walt Disney. Muito se fala sobre os maiores desenhistas do estúdio, seja por
meio de livros, a exemplo de Walt Disney' Nine Old Men ou por meio de blogs, como o
https://50mostinfluentialdisneyanimators.wordpress.com. Não coincidentemente, todos
esses desenhistas consagrados e frequentemente homenageados são homens, o que leva ao
questionamento sobre o papel das mulheres dentro dos estúdios Disney, isto é, se havia
mulheres trabalhando na produção das animações e que lugar ocupavam nessa linha de
produção. Nesse sentido, a reportagem Coloring the Kingdom
17
, publicada em 2010 na
revista Vanity Fair, pode mostrar-se bastante esclarecedora. A autora do texto, Patricia
17
Disponível em:
http://www.vanityfair.com/culture/2010/03/disney-animation-girls-201003
. Acesso em:
04/12/2016.
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Zohn, utilizou de entrevistas com sua tia Rae Medby McSpadden, a qual trabalhou para os
estúdios Walt Disney desde os anos de 1930 até a década de 1950, para contar um pouco da
trajetória das mulheres que trabalharam nos estúdios. Rae era uma das muitas mulheres que
trabalhavam no Inking and Painting Department (Departamento de Tintagem e Pintura),
setor dos estúdios responsável pelo preenchimento de milhares de células, que dariam
movimento às animações. Por ser uma atividade que necessitava de bastante atenção aos
detalhes, refinamento e delicadeza, o Departamento era ocupado por mulheres – sendo,
inclusive, o único departamento com funções delegadas a mulheres, dentro dos estúdios.
Essa divisão de tarefas pode ser explicada pelo consenso que havia de que os homens
teriam uma aptidão melhor para a ação, personalidade e caricatura na confecção dos
personagens – monopolizando o Departamento de Animação – além de que os estúdios
preferiam não investir em garotas animadoras, já que ao final da longa experiência em
pintura, muitas mulheres acabavam largando suas carreiras para casar e constituir família.
Rae enfatiza que o trabalho no Departamento envolvia muito mais do que apenas
desenhar e pintar, mas também representava um certo status: as mulheres que trabalhavam
lá, de fato mantinham uma aparência impecável, além de que a atividade minuciosa
requeria mãos firmes, o que afastava as garotas de hábitos como beber e fumar.
O trabalho era árduo e muitas garotas viviam exaustas e em estrita disciplina, mas
Zohn defende que essas jovens se encontravam numa posição social interessante: nem
trabalhadoras das fábricas nem mulheres que viviam nas farras, o grupo era composto por
mulheres que poderiam muito bem servir de inspiração real para as personagens de garotas
trabalhadoras, que povoaram os filmes nos anos de 1930 e 1940.
A partir das considerações sobre as representações das mulheres na cultura norte-
americana e seus papéis dentro e fora dos estúdios cinematográficos de Walt Disney,
abordaremos no próximo capítulo o maniqueísmo social referente aos "tipos" de mulheres
naquele contexto estadunidense, assim como suas participações nas narrativas fílmicas, a
partir da análise das princesas e das vilãs nas duas animações estudadas.
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