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Representações das mulheres nas animações Disney
2.1. Estúdios Walt Disney e a cultura americana
Entendendo os filmes Cinderela e A Bela Adormecida enquanto documentos
propícios para a pesquisa histórica, é fundamental buscar uma compreensão mais geral do
contexto em que tais filmes foram confeccionados – uma vez que essas fontes não se
encontram isoladas no espaço e no tempo e foram forjadas no seio de uma determinada
época e de acordo com ideologias específicas. Não se trata de excluir as obras dos estúdios
Walt Disney da criatividade individual de seus idealizadores, todavia, é possível analisar as
características dos filmes e propor uma interpretação que abarque as relações entre as obras
e seu contexto.
Um livro que apresentou-se relevante para a compreensão do contexto histórico de
criação dos filmes estudados foi a coletânea de textos sobre a História dos Estados Unidos,
organizada por Leandro Karnal. Lançada em 2007 pela Editora Contexto, a obra oferece
um amplo panorama da história daquele país, desde suas origens até o século XXI. As
partes do livro nas quais optamos por focar são aquelas sobre os EUA no contexto da
Segunda Guerra e a posterior sociedade e cultura encontradas no período da Guerra Fria.
Sean Purdy, autor do capítulo O século americano, inicia comentando sobre o mito
existente nos EUA de que a Guerra teria sido boa, uma vez que contra o fascismo.
Entretanto, Purdy destaca que a realidade do pós-guerra pôs em contradição os ideais de
democracia e justiça social pelos quais se havia lutado durante a Guerra, uma vez que
várias minorias tiveram suas pautas postas de lado, frente às preocupações econômicas.
Além disso, por mais que os EUA tivessem dobrado seu PIB ao final da Guerra,
conseguindo superar a Depressão e o desemprego, estas conquistas foram alcançadas em
grande medida por meio do crescente controle econômico e social –conservador – exercido
por grandes corporações, as quais garantiam bons salários para os trabalhadores.
Além da luta externa contra as potências do Eixo, os EUA empreenderam uma
grande mobilização ideológica e econômica dentro do país, criminalizando, com o Ato
Smith (1940) qualquer oposição à guerra ou a militância de doutrinas revolucionárias. Os
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meios de comunicação agiram fortemente no sentido de mobilizar a opinião pública aos
interesses do governo e das elites.
Um ponto interessante destacado por Purdy, são as relativas conquistas alcançadas
pelas mulheres durante a guerra. Apesar das noções discriminatórias de gênero ainda
bastante vigentes, as mulheres puderam agir como “combatentes sem armas” durante a
guerra, uma vez que o número de mulheres trabalhando foi elevado a 60% no período,
provendo a estas mulheres uma relativa independência econômica. Apesar de os anos 1950
serem comumente vistos como amplamente reacionários para as mulheres, Purdy
argumenta, de forma otimista, que foram, justamente, as tímidas porém crescentes
mudanças ocorridas naquele período – tal qual o aumento no uso de contraceptivos e nas
taxas de divórcio – que propiciaram as fundações e desenvolvimento do movimento
feminista nos anos 1970 e 1980.
Mesmo com as melhorias econômicas advindas da guerra, é preciso lembrar que
uma reforma socioeconômica permanecia em segundo plano e a discriminação a minorias
mantinha-se grande, como é possível observar por meio do racismo contra mexicanos, que
acarretou num motim em Los Angeles em 1943; a segregação de negros nas Forças
Armadas e o mal tratamento aos nipo-americanos, após as tensões com o Japão.
Purdy também discursa sobre a sociedade e a cultura cristalizadas nos EUA durante
a Guerra Fria. Naquele contexto, as representações presentes na televisão, no cinema e na
literatura foram peças-chave na difusão da crença na prosperidade econômica e na
estabilidade familiar americanas. O modelo de família baseava-se numa estrutura nuclear,
na qual o pai trabalhador e a mãe dona de casa viveriam com alguns filhos
harmoniosamente em casas nos subúrbios. Entretanto, o autor destaca que esta
representação da sociedade não necessariamente correspondia à realidade americana
naquele período – exemplo disso foi a má distribuição de renda, culminando na estatística
aterradora lançada em 1960, de que um quinto das famílias americanas vivia abaixo do
nível oficial de pobreza estabelecido pelo governo.
Nesse sentido, é possível perceber que o contexto histórico mais amplo dos EUA no
período de criação de Cinderela e A Bela Adormecida incluía o pós-guerra vitorioso e bem-
sucedido economicamente, porém permeado por contradições e desigualdades sociais.
Sean Purdy ainda ressalta que a indústria cultural teve papel fundamental na difusão de
valores capitalistas tais quais o consumismo, além de fornecer representações do que
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seriam os modelos padrão de família, de papéis de gênero e estilos de vida. Nesse sentido,
apesar da crescente popularidade da televisão, o cinema ainda encontrava-se como um dos
veículos de comunicação e entretenimento mais importantes no período.
Segundo Tota (2000: 21) o cinema foi a maior de todas as inovações americanas na
área do entretenimento, divulgando, mais do que qualquer outro meio, o American way of
life, de forma a americanizar, primeiro, os Estados Unidos, depois o resto da América. O
autor define o americanismo enquanto um processo fincado em alguns elementos que
emergiram nos EUA principalmente a partir da primeira metade do século XX, dentre eles,
a democracia, o progressivismo e o tradicionalismo. A democracia estaria atrelada aos
heróis americanos, às ideias de liberdade, direitos individuais e independência. O
progressivismo cristalizar-se-ia de forma prática nos atos de trabalhar, produzir, ganhar
dinheiro e consumir, além de associar-se às ideias de racionalismo e abundância de
produtos, que propiciavam o consumo – nova forma de prazer, até então. Já o
tradicionalismo, relacionava-se com o mito da vida pura e saudável na fazenda, na relação
íntima com a natureza, no enaltecimento dos valores familiares, na coragem dos indivíduos
e no temor a Deus.
Para angariar a parceria dos países da América Latina no contexto da Política da
Boa Vizinhança, mais importante do que a venda de produtos americanos, era a venda do
modo de vida americano. “O sucesso no campo econômico tornava necessária uma base
sólida no campo ideológico” (TOTA, 2000: 54). Nesse sentido, o mercado era a melhor via
para a americanização, sendo os filmes comerciais, como aqueles de Frank Capra – a
exemplo de Felicidade não se compra (It's a wonderful life, 1946) –, muito eficientes
enquanto veículo de propagação do American way of life.
Procurando traçar um panorama detalhado do contexto de Hollywood nos anos de
1940 – década anterior ao lançamento dos filmes utilizados como fonte –, Otto Friedrich,
em A cidade das redes (1988), defende que a história de Hollywood foi marcada pela
construção de um grande império, no qual figuraram sonhos de glamour, de beleza, fortuna
e sucesso, assim como por um processo de declínio e queda. Friedrich crê que Hollywood
foi uma cidade, de certa forma, imaginária, pois sua existência foi vivenciada e é
relembrada a partir de diferentes memórias pessoais e coletivas mas, mesmo levando em
conta essas subjetividades, o autor afirma que aquela cidade ao longo dos anos 1940 foi
uma fábrica de sonhos, tendo criado a maior parte do que os americanos consideram
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atualmente como realidade.
Em 1939 os estúdios de cinema haviam se tornado a décima primeira indústria dos
EUA – sendo, este ano, coincidente com o lançamento de importantes filmes, como ...E o
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