1.6. Principais rupturas entre as narrativas fílmicas e os contos de origem
Nesta primeira etapa da pesquisa, partimos dos contos escritos originais e
comparamos-lhes às animações da Disney, visando identificar as semelhanças e,
principalmente, as mudanças mais significativas de uma narrativa a outra, de maneira a
pensar os possíveis significados dessas transformações, considerando as especificidades do
material cinematográfico e ponderando sobre os possíveis sentidos histórico-sociais
associados a essas modificações.
De forma mais ampla, os dois filmes apresentam várias características em comum
entre si, a começar pelo fato de que as duas narrativas fílmicas foram baseadas nos contos
de Charles Perrault, publicados em finais do século XVII. Além disso, as duas histórias
apresentam atmosferas fantásticas, enredos de fácil compreensão, que acabam por levar a
determinadas “morais da história”, além da presença de personagens frequentes, membros
da nobreza – com a exaltação da figura da princesa – ou a participação de seres mágicos
(como as fadas). Além disso, é interessante perceber que tanto as narrativas escritas quanto
a dos filmes, seguem uma estrutura linear, sem flashbacks e flashforwards, por exemplo, e
com pontos de viradas e clímax bem definidos e dentro dos moldes de um modelo clássico
de narrativas.
No filme de Cinderela, uma das transformações que mais nos chamaram a atenção
de uma narrativa para a outra, foi a constante ajuda que a jovem recebe de seus amigos
animais – responsáveis pelo tom humorístico do filme, em detrimento do drama vivido por
Cinderela. Cremos que tal inserção de personagens foi pensada para deixar a animação
mais dinâmica e infantilizada, direcionando a história, dessa forma, ao público infantil,
diferentemente de Perrault, que redigiu suas narrativas visando os adultos, respeitando o
que era da tradição oral.
Também identificamos um maniqueísmo acentuado entre Cinderela e sua madrasta
e irmãs – as quais, no filme, ganham contornos mais perversos e detalhados do que no
conto escrito. Tal maniqueísmo é observado mais claramente na sequência do filme em que
Tremaine, ao perceber que a bela moça do baile tratava-se de Cinderela, tranca a menina
em seu quarto, para que ela não pudesse experimentar o sapatinho de cristal trazido pelo
grão-duque. Esta é uma das sequências em que o espectador é levado a momentos de
intensa apreensão, cultivando pena de Cinderela e raiva pela madrasta. No conto escrito,
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diferentemente, esse episódio de perversidade de Tremaine não existe.
Outra coisa relevante é o desfecho da história que, na animação, encerra-se com o
casamento de Cinderela e o Príncipe – numa fuga total de sua realidade anterior de
sofrimento –, enquanto que, no conto escrito, há a reconciliação da garota com sua família,
a qual Cinderela leva para morar em seu palácio.
Na animação de A Bela Adormecida, um aspecto que chama a atenção, novamente,
é a presença do maniqueísmo entre personagens, notadamente entre as figuras da princesa
Aurora e Malévola. No filme, Malévola deixa de ser uma fada má amargurada e adquire
contornos de uma criatura realmente das trevas, um demônio, assim como Aurora não
apresenta nenhuma característica de malevolência ou dissimulação. Outro fator bastante
destacado na animação é a questão das virtudes, principalmente a beleza, perpassando a
narrativa. Vê-se, ao longo do filme, que os personagens têm suas personalidades baseadas,
essencialmente, em determinados valores morais, tidos como bons ou ruins. Os bons
valores pertencem a basicamente todos os personagens do filme, exceto Malévola, que é a
personificação de tudo o que há de maligno e errado.
Este abismo entre personagens acabou virando um recurso usado com frequência
pelos estúdios de Walt Disney em suas animações. No caso dos filmes que apresentam
contos de fadas, este recurso foi usado, por via de regra, para separar as vilãs das princesas,
tornando essas últimas objeto de identificação quase que imediato aos espectadores dos
filmes. Considerando que o público-alvo desses filmes foi formado comumente por jovens
e crianças do sexo feminino, a identificação com as princesas é algo que acontece de forma
rápida e bastante eficaz.
Como defendido por Pierre Sorlin (1994), as imagens possuem um grande apelo
emocional e, no caso da reação emocional provocada naqueles que vêm a imagem – ou o
filme –, é importante destacar que estas reações afetam o modo como o espectador interage
com a história que está sendo contada, assim como transporta para sua vida as percepções
geradas pelo contato com tal arte.
O apelo emocional das imagens também é enfatizado por Balensifer e Jaguaribe
(2012), que destacam o cunho mais abstrato das representações pictóricas nos desenhos
animados (com relação ao realismo da imagem fotográfica, por exemplo). As autoras
defendem que a apropriação de contos de fadas em animações é comum porque a técnica
permite a manifestação do caráter onírico e fantasioso dessas histórias: "O cinema live-
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action é capaz de recontar contos de fada, mas sua representação é tão próxima da real que
a magia envolvida nesse tipo de história é melhor retratada pelo desenho" (BALENSIFER;
JAGUARIBE; 2012: 4). Nesse sentido, o fato das representações animadas serem mais
abstratas e permitirem uma ampla identificação é apontado pelas autoras como responsável
pelo sucesso da obra de Disney em diferentes culturas e países.
No caso de nossas fontes, em específico, é possível averiguar que o espectador é
geralmente levado à identificação com a princesa Aurora e com Cinderela, seja pelo drama
que enfrentam, pelas atitudes bondosas e suaves que manifestam com relação àqueles que a
cercam, ou por partilharem de seus desejos. Além disso, destaca-se, principalmente em
Bela Adormecida, a beleza que a garota possui: ela enquadra-se na definição de beleza
proposta pela narrativa e não precisa esforçar-se para isso. A beleza é um conceito estético
que averiguamos ser transmutado em valor ético na construção da narrativa
cinematográfica, ao ser associado às virtudes morais da personagem fílmica. Isto é, os
atributos físicos tidos como belos, tais quais os “raios dourados no cabelo, lábios
vermelhos como rosas”, são muito característicos da personagem Aurora, a qual é, ao
mesmo tempo, representação de determinados valores morais: a bondade, a ingenuidade.
Dessa forma, o filme termina por mesclar dois tipos de valores, que podem passar a ser
interpretados como sinônimos. É nesse ponto em que problematizamos a noção de
“beleza” presente nos filmes Cinderela e A Bela Adormecida. Uma vez que tal
característica é um conceito que muda de época para época e de sociedade para sociedade,
buscamos entender de que forma este relaciona-se ao contexto histórico dos Estados
Unidos na década de 1950, época na qual os filmes foram confeccionados. Sobre isso,
falaremos mais detidamente no capítulo II.
Outra questão bastante marcante em A Bela Adormecida é o enfoque que há na
animação sobre as três fadas, as quais acabam mostrando-se muito mais ativas ao longo da
história do que a própria princesa. É possível traçar um paralelo entre as três fadas de A
Bela Adormecida com os pequenos animais amigos de Cinderela e sua fada madrinha:
todos esses personagens são responsáveis por atribuir tom humorístico às narrativas, com
suas atitudes desajeitadas. Algo intrigante é que essas figuras acabam realizando grande
parte das atividades essenciais para que as princesas tenham desfechos vitoriosos.
Quanto ao desfecho de Bela Adormecida no filme, pode-se dizer que é elaborado de
forma bastante diferente da narrativa escrita. Como em Cinderela, o filme termina com a
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união do casal principal, que levaria a um futuro feliz e próspero na vida das princesas. No
caso de A Bela Adormecida, é possível interpretar que o final tumultuado e obscuro
encontrado em Perrault foi eliminado do filme para adequá-lo ao público infantil, ao
mesmo tempo em que corrobora para a concepção de que o final feliz é aquele marcado
pela efetivação do matrimônio. O casamento entre príncipe e princesa de fato ocorre na
narrativa de Perrault, entretanto, não encerra o conto escrito – muito pelo contrário, depois
do casamento, muitas coisas terríveis acontecem, como as tentativas de assassinato da mãe
ogresa do príncipe e seu próprio suicídio.
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