após o pai casar-se em segundas núpcias, passa a viver uma realidade de explorações e
humilhações cotidianas a partir da convivência com sua madrasta e suas duas filhas. Nessa
grande adenso psicológico na personalidade das personagens, por exemplo.
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Cinderela aparece caracterizada por Perrault (2012: 59) como uma “jovem, dotada
de meiguice e bondade sem igual”. A madrasta, por sua vez, é descrita como “a mulher
mais arrogante e orgulhosa que já se viu” (PERRAULT, 2012: 59) e, não suportando as
qualidades de sua enteada – principalmente quando comparadas às de suas filhas –, passa a
mandar que a menina se ocupe da realização das tarefas mais humildes da casa, como lavar
a louça e escadarias e limpar cômodos. Não bastasse tais obrigações, a menina dormia no
sótão, sobre um colchão de palha. Apesar de todo o mau tratamento recebido por parte da
madrasta e suas filhas, a menina não ousava reclamar com o pai, pois sabia que o homem,
submisso que estava à nova esposa, repreenderia suas queixas.
Dentro de casa, a menina recebeu apelidos de suas irmãs: a mais velha chamava-lhe
de Borrabunda e a mais nova, de Borralheira – depois de terminar suas tarefas, a garota
costumava sentar-se perto da lareira, motivo pelo qual acabava se sujando com as cinzas do
fogo. Porém, mesmo suja e com roupas ruins, a menina continuava sendo mais bonita que
as irmãs.
Um dia, o filho do rei resolveu dar um baile e convidou todas as pessoas distintas
da região. As irmãs, empolgadíssimas com o convite para o evento, trataram de
providenciar os melhores trajes e penteados para a ocasião. Borralheira ocupou-se de
grande parte dos preparativos: passava as roupas e fazia as pregas nos abanos, deu
conselhos de penteados.
Chegado o grande dia, todos se foram para o baile, exceto Borralheira que, ficando
sozinha, põe-se a chorar. Eis que surge a madrinha da menina, para a qual Borralheira
confessa seu desejo de ir ao baile. Utilizando-se de seus dons mágicos, a madrinha,
atendendo ao desejo da menina, transforma uma abóbora numa bela carruagem dourada,
seis camundongos em lindos cavalos brancos, um rato num cocheiro e seis lagartixas em
lacaios. Além disso, deu roupas de ouro, prata e pedras preciosas e chinelas de cristal para
Borralheira. A madrinha fez apenas uma recomendação à menina: que voltasse do baile
antes da meia-noite pois, nesse exato horário, toda a magia terminaria e a abóbora, os
animais e os trajes ornamentados retornariam a seu aspecto original.
Prometendo cumprir a recomendação da madrinha, Borralheira seguiu ao baile,
onde ao chegar foi recebida com um total silêncio e admiração por parte do rei e dos
convidados que, apesar de não conhecerem a “princesa” ficaram estarrecidos com sua
beleza. Foi chamada para dançar pelo filho do rei, e em seguida para jantar em sua
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companhia, tendo realizado as duas atividades com respectiva graciosidade e cortesia.
Assim que o relógio soou quinze para a meia-noite, Borralheira despediu-se dos
convidados e voltou para a casa, onde reencontrou a madrinha, agradeceu-lhe e pediu para
ir ao baile também no dia seguinte, já que havia sido convidada pelo filho do rei.
A madrinha concedeu-lhe o pedido e no segundo dia de baile lá estava novamente
Borralheira que, entretida com os constantes galanteios do filho do rei, acabou perdendo a
hora e teve que sair correndo ao ouvir a primeira badalada da meia-noite. A pressa foi tanta
que deixou cair uma das chinelas de cristal pelo caminho. O filho do rei recolheu a
chinelinha e, apaixonado que estava pela dona do sapato, mandou avisar, alguns dias
depois, que se casaria com aquela cujo pé se ajustava perfeitamente à chinela.
Ao chegar à casa da família de Borralheira, a chinela foi experimentada pelas irmãs
da menina, que tentaram de tudo para calçar o sapato, obviamente em vão, ao que
Boralheira pediu para ver se lhe servia o sapato. Eis que a chinela serviu-lhe perfeitamente,
para a surpresa das irmãs. Logo em seguida, apareceu a madrinha e lhe deu uma roupa
magnífica, então as irmãs reconheceram que a menina era a bela dama vista no baile. As
duas irmãs ajoelharam-se e pediram perdão a Borralheira, a qual abraçou-as, perdoando-as
a pedindo-lhes que a amassem para sempre. Poucos dias depois a menina casou-se com o
príncipe e, sendo tão boa quanto bela, levou as irmãs para morar consigo no palácio e
casou-as com nobres da corte.
Após o conto, encontra-se as duas morais redigidas por Charles Perrault (2012: 67)
e é interessante notar que a figura da madrinha é citada em ambas as morais, enfatizando-
se sua importância para o desfecho feliz de Cinderela. Na primeira das morais, destaca-se o
valor da simpatia para se “arranjar amor e dar-se muito bem” e nesse caso, este dom na
personalidade de Cinderela foi exclusivamente obtido graças à madrinha que o concedeu.
Já na segunda moral, além da relevância dada à presença de bons padrinhos e madrinhas
para que se consiga prosperar na vida, há a desvalorização de virtudes como inteligência,
coragem e sensatez – de nada valem, caso não se possua um bom mentor como padrinho.
Nesse sentido, as duas morais ajudam a concluir que o final feliz de Cinderela só foi
possível por causa da ajuda de sua madrinha e, a relevância dada a esta última personagem
é tanta, que os esforços individuais de Cinderela ao longo da narrativa são praticamente
anulados.