1.3. Cinema e contos de fada: um universo de ficções
Desde seus primeiros tempos, o cinema ocupou-se de contar histórias de amplo
conhecimento do público, sejam aquelas baseadas na literatura, ou as inspiradas em
narrativas históricas
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. Com os chamados contos de fada
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não foi diferente: Branca de Neve,
por exemplo, possui versões fílmicas desde 1916
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, Cinderela desde 1899
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e A Bela
Adormecida desde 1949
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. Pode-se dizer que as adaptações cinematográficas de contos que
alcançaram maior popularidade e prestígio foram aquelas elaboradas pelos estúdios de
Walt Disney – os motivos para tal sucesso serão analisados nos capítulos seguintes.
À primeira vista, cinema e literatura podem parecer modalidades artísticas um tanto
quanto distintas, porém ao observar melhor suas estruturas narratológicas é possível tecer
algumas relações entre as artes e compreender o recorrente trânsito entre histórias contadas
por meio da literatura e por meio do cinema.
Xavier (2012: 33), situa as diferenças fundamentais entre literatura e cinema no fato
de que o primeiro é realizado através da mobilização de material linguístico e, o segundo,
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De uma extensa lista de exemplos, podemos citar o caso de Jeanne d'Arc (1899), dirigido por Georges
Méliès; Frankenstein (1910), dirigido por J. Searle Dawley e baseado no livro homônimo de Mary
Shelley; Cleopatra (1917), dirigido por J. Gordon Adams; Faust - Eine Deutsche Volkssage (1926),
dirigido por F. W. Murnau e baseado na obra de Goethe; Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1931), dirigido por
Rouben Mamoulian e baseado no livro de Robert Stevenson; The Wizard of Oz (1939), dirigido por
Victor Fleming e baseado no livro de L. Frank Baum. A maioria dessas histórias teria outras versões
cinematográficas posteriormente.
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Aqui, referimo-nos às narrativas de popularidade oral, posteriormente convertidas em gênero literário.
Falamos mais sobre sua história no tópico 1.1.
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Direção de J. Searle Dawley.
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Esta primeira versão chamou-se Cendrillon e foi dirigida por Georges Méliès.
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A versão de 1949, Prinsessa Ruusunen, foi produzida na Finlândia e dirigida por Edvin Laine. Em 1955
surgiria uma nova versão para o cinema, Dornrösche produzida na Alemanha, com direção de Fritz
Genschow.
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ser concretizado em um tipo específico de imagem. O autor ressalta que essa definição
normalmente abre caminho para a ideia de que, enquanto a literatura é realizada por meio
da convencionalidade da palavra escrita, o cinema é associado a um suposto realismo de
suas imagens. Entretanto, é preciso considerar as convenções que presidem determinado
tipo de montagem, no cinema.
Para alcançar os efeitos naturalistas, no cinema, são realizados trabalhos em
diferentes aspectos. Um deles é a necessidade de o filme ancorar-se na narração de uma
história, o que implica na incorporação de convenções narrativas e dramáticas não
exclusivas ao cinema. Vários paralelos podem ser feitos entre os procedimentos utilizados
no cinema e aqueles encontrados na literatura, tais quais o paralelismo na montagem
efetuado no cinema e a expressão “enquanto isto...” na literatura; a mudança de ponto de
vista numa mesma cena; a presença da seleção do narrador.
Aqui, gostaríamos de destacar a natureza ficcional das obras escolhidas como
fontes: ora, enquanto animação, Cinderela e A Bela Adormecida possuem não apenas uma
narrativa ficcional, mas também personagens, cenários, vozes e movimentos construídos
por desenho e animação. Considerando que uma grande quantidade de trabalhos
acadêmicos na área de História utilizam-se de filmes chamados “históricos” – isto é, que
representam algum evento de fato ocorrido em algum período histórico, com personagens e
roteiro amplamente baseados em tradição historiográfica escrita –, ainda faz-se necessária
uma defesa ao cinema declaradamente ficcional enquanto objeto legítimo de estudo dos
historiadores. Algumas questões podem ser colocadas nesse cenário, de forma a suscitar a
reflexão sobre certos paradigmas que definem o grau de “realidade” e “fidedignidade”
dentre os gêneros cinematográficos e, mais amplamente, artísticos. Isto é: até que ponto um
filme histórico está fora do campo ficcional? O cinema ficcional é, até que ponto,
construído arbitrariamente em torno da narrativa que se quer contar?
Marc Vernet (1995), defendendo que qualquer filme é um filme de ficção, destaca
que, apesar de o cinema parecer mais fidedigno do que outros tipos de representação (ex:
pintura e teatro), na verdade o filme “ausenta” sua falta de realidade. Isto é, enquanto no
teatro o que representa (os atores, cenário e acessórios) são reais e o que é representado é
fictício, no cinema, tanto o representante quanto o representado são fictícios, pois a cena já
foi realizada no passado e em outro local que não dentro da tela onde a vemos. Sobre o
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cinema ficcional, argumenta que o filme de ficção, especificamente, é duas vezes “irreal”,
pois tanto a história contada consiste em uma ficção, quanto o modo como a representa
também, isto é, o próprio filme e as imagens nas quais consiste. Vernet ainda ressalta que
até mesmo o filme industrial, o filme científico e o documentário são tipos de filme
ficcionais, quer pelo caráter de “espetáculo” que assumem; ou por focarem em aspectos
não percebidos com frequência – que fogem da realidade a qual o espectador está
acostumado –; ou pela preocupação estética – que transforma o objeto em contemplação –;
ou ainda pelos procedimentos narrativos encontrados também nesses gêneros, o que
confere uma aparência coerente às informações heterogeneamente recolhidas. Vernet
afirma que: “É, portanto, de várias formas (modos de representação, conteúdo,
procedimentos de exposição) que qualquer filme, de qualquer gênero, pode pertencer à
ficção” (VERNET, 1995, p. 102). Nesse sentido, propomos a abordagem de estudo de
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