participação das mulheres na história, a reação foi de um interesse mínimo: ‘a
compreensão de um determinado acontecimento, a revolução francesa, por
exemplo, não mudou com a descoberta de que as mulheres dela
participaram’. Esse tipo de reação encerra, segundo Scott, um desafio teórico.
Ele exige a análise não só da relação entre experiências masculinas e
femininas no passado mas também a ligação entre a história do passado e as
práticas históricas atuais. (SOIHET, 2007, p.9)
Essa marginalidade da história das mulheres e das relações de gênero se repetirá
na área do ensino de História. Os PCN para o ensino fundamental, elaborados entre
1995 e 1997, sem dúvida representaram um grande avanço para a inserção das
discussões de gênero no campo educacional. Entretanto, essa inserção não se deu na
116
área das Ciências Humanas e Sociais, na qual não há nenhuma inserção sequer na parte
dedicada à História. Sua inserção se faz apenas na área das ciências biológicas através
do volume Temas Transversais, na parte de Orientação Sexual (BRASIL, 1997b). A
palavra gênero apareceu, mas em nenhum momento foi explicada, deixando-a aberta a
interpretações várias, inclusive ao entendimento de gênero como um sinônimo de sexo.
Segundo Valeria Fernandes da Silva,
[...] é possível perceber, nos PCN, a tentativa de contemplar algumas das
discussões e demandas feministas na medida em que as mulheres estão
incluídas nos documentos junto com outros grupos desprivilegiados; houve,
também, um grande esforço para acomodar o conceito de gênero dentro do
texto final, no entanto este ficou associado às discussões referentes à
orientação sexual e à sexualidade. [...] Desde a apresentação do volume de
Temas Transversais, fica evidente no texto que o conceito de gênero se faz
presente na discussão subordinado aos temas que realmente preocupam os/as
autores/as do texto, isto é, o avanço do HIV, das doenças sexualmente
transmissíveis, da gravidez na adolescência, entre outros. (Silva, V., 2015)
Nos Parâmetros Curriculares para o ensino médio, a situação é talvez pior: a
palavra gênero aparece uma única vez, na seção de História, em uma discussão sobre a
cidadania no Brasil. Novamente, surge sem uma explicação do seu significado e
podendo ser substituída por sexo, mantendo-se o sentido do texto. Entretanto, há, ao
longo das recomendações, uma preocupação com a “pluralidade de sujeitos” e com as
identidades individuais e coletivas, especificamente as de grupos minoritários
entendendo as mulheres como um destes grupos (BRASIL, 2013).
Se o avanço no campo da história das mulheres e da história das relações de
gênero não se faz presente nos parâmetros curriculares, também muito pouco se faz nos
livros e materiais didáticos. Há um
[...] contínuo silenciamento em relação à atuação das mulheres enquanto
agentes históricos nos livros didáticos, cujos textos deveriam caminhar junto
com o que está expresso nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Fala-se
muito pouco das mulheres, e, quando se fala, ressalta-se a exceção, ou a
opressão como regra”. (SILVA, V., 2015)
De maneira semelhante, a atuação das mulheres, assim como a dos indígenas ou
dos negros, nunca aparece no texto principal dos livros didáticos, mas apenas em box ou
nas páginas de atividades complementares ao final dos capítulos. Segundo Cristiani
Silva,
[...] ao incorporar temáticas que envolvem mulheres e relações de gênero
como apêndices da história geral – através de textos complementares –
expõem, paradoxalmente, permanências, ao invés de mudanças. [...] as
mulheres parecem permanecer como um grupo desviante entre os saberes
históricos escolares, ao passo que os homens ainda ocupam a “base da
elaboração da regra”. A história das mulheres e, mesmo, as formulações
sobre as diferenças e desigualdades de gênero, são, ainda, adendos da história
117
geral, muitas vezes incorporadas e abrigadas sob o guarda-chuva das
minorias étnicas, nacionais, religiosas ou sexuais. (SILVA, C., 2007, p. 228)
Como destaca Valeria Fernandes da Silva (2014), as mulheres continuam a ser
“reclusas de caixa de texto”. Nos materiais didáticos, que são comprados e distribuídos
com verba pública para os quase 85% dos jovens em idade escolar no Brasil que
estudam na rede pública, a voz que se faz presente ainda é a do
[...] sujeito masculino, branco, cristão, heterossexual, europeu, produtivo e
reprodutivo. Ao longo do tempo essa voz obteve ampla autoridade e
legitimidade, construindo e difundindo representações racistas, sexistas,
colonialistas e eurocêntricas acerca da história, das identidades e relações
sociais. (OLIVEIRA, 2014, p. 277)
As principais discussões a respeito da identidade, hoje em dia, se fazem como
tentei mostrar, problematizando a naturalização das identidades, sejam elas quais forem.
Assim, as identidades perdem seu caráter essencialista, estável, coerente, fixo,
permanente, acabado, transcendental, e adquirem um caráter de construção, processo,
relação, performance, instabilidade, contradição, fragmentação, representação e relação
de poder. Por isso, as metáforas para descrever os movimentos identitários fazem
justamente alusão à ideia de movimento, viagem e deslocamento como diáspora,
fronteira, nomadismo, hibridismo, miscigenação, sincretismo, travestismo (HALL,
2014).
Muito caro aos movimentos identitarios, principalmente quando discute-se a
identidade, o conceito de performatividade “desloca a ênfase na identidade como
descrição, como aquilo que é – uma ênfase que é de certa forma, mantida pelo conceito
de representação – para a ideia de ‘tornar-se’, para uma concepção de identidade como
movimento e transformação” (SILVA, T., 2014, p. 92). Silva lembra que para Judith
Butler um dos principais ganhos ao utilizar o conceito de performance no lugar do de
representação seria que a mesma repetibilidade linguística que “garante a eficácia dos
atos performativos que reforçam as identidades existentes pode significar também a
possibilidade da interrupção das identidades hegemônicas. A repetição pode ser
interrompida. A repetição pode ser questionada e contestada” (idem), levando assim a
uma possibilidade de diminuição das desigualdades. Na visão de Hall, as identidades
significariam
o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as
práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que
assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares
e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos
constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades são, pois,
118
pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas
constroem para nós. (HALL, 2014, p. 113)
Entendendo-se identidade desta forma, tende-se a fugir de posicionamentos
problemáticos como o de simplesmente fazer uma “ode à diversidade”, falando sobre
uma “natureza humana” que se apresentaria de variadas formas e evitaria-se um
sentimento paternalista de superioridade, um naturalizar os processos de diferenciação e
as relações de poder assim criadas. Deixaria-se de apresentar o outro como o exótico, o
folclórico e pararia-se de atribuir a incapacidade de convivência com grupos diferentes
como fruto de “estereótipos e preconceitos”, que precisam de tratamento psicológico e
campanhas de conscientização, sem que se questione as relações de poder que envolvem
estas identidades. Chamaria-se a atenção para o caráter de construção/produção das
identidades, sejam quais forem, e das imbricações políticas de cada construção bem
como as relações de poder estabelecidas nos processos de diferenciação. (CANEN,
2002; SILVA, T., 2014)
Assim, substitui-se o conceito de diversidade em sua lógica estática, natural,
estéril, de diferenças irredutíveis, que se limita ao existente e reafirma sempre o
idêntico, para o conceito de multiplicidade - entendida como processo, fluxo - ativa,
produtiva e produtora de diferenças, multiplicadora, proliferadora, disseminadora e
recusando-se a permanecer sempre idêntica.
Compreendendo as identidades, incluindo a de gênero, como discursivas e
performativas, acadêmicos e movimentos sociais tentam incluir os debates de gênero
nos planos municipais, estaduais e federal de educação, de forma a garantir que eles
estejam presentes em currículos e materiais didáticos. Ao mesmo tempo, setores
conservadores ligados principalmente à igreja Católica e às igrejas neopentecostais se
organizam em uma ação para barrar essa iniciativa. Neste contexto, movimentos sociais
e grupos acadêmicos lançaram em 2015 um “manifesto pela igualdade de gênero na
educação: por uma escola democrática, inclusiva e sem censuras”. Reproduzimos dois
trechos abaixo:
grupos de pesquisas, instituições científicas e de promoção de direitos civis,
as instituições abaixo assinadas vêm a público manifestar repúdio à forma
deliberadamente distorcida que o conceito de gênero tem sido tratado nas
discussões públicas e denunciar a tentativa de grupos conservadores de
instaurar um pânico social, banir a noção de “igualdade de gênero” do debate
educacional e reificar as desigualdades e violências sofridas por homens e
mulheres no espaço escolar. [...] Ao contrário de “ideologias” ou “doutrinas”
sustentadas pela fundamentação de crenças ou fé, o conceito de gênero está
baseado em parâmetros científicos de produção de saberes sobre o mundo.
Gênero, enquanto um conceito, identifica processos históricos e culturais que
classificam e posicionam as pessoas a partir de uma relação sobre o que é
119
entendido como feminino e masculino. É um operador que cria sentido para
as diferenças percebidas em nossos corpos e articula pessoas, emoções,
práticas e coisas dentro de uma estrutura de poder. E é, nesse sentido, que o
conceito de gênero tem sido historicamente útil para que muitas pesquisas
consigam identificar mecanismos de reprodução de desigualdades no
contexto escolar. (MANIFESTO PELA IGUALDADE [...], 2016)
Como destaca Tomaz Silva, “a Identidade e a Diferença não podem ser
compreendidas, pois, fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido”
entendendo a língua como um sistema de significação e sendo, ela própria, uma
estrutura instável. (SILVA, T., 2014, p. 78). Especificamente dentro do campo do
ensino de História, devemos retomar as questões colocadas por Hartog e Koselleck para
pensar a dimensão temporal que, assim como a linguística, também constitui um
sistema de significações. Ou, como coloca Gabriel e Costa,
[...]isso significa perceber como as lógicas da equivalência e da diferença
atuam em um contexto onde o jogo de linguagem se faz de forma imbricada
como o jogo do tempo em contexto escolar, onde a temporalidade é uma
dimensão central do discurso, isto é, de uma totalidade estruturada resultante
de práticas articulatórias. (GABRIEL E COSTA, 2011, p. 133)
Assim, caberia a nós, professores de História, ajudar na construção da identidade
dos nossos alunos, mas não de uma identidade única, ligada ao nacional ou mesmo a um
grupo especifico e, sim, de uma ideia de identidades múltiplas ligadas às diferentes
instâncias de suas vidas. A melhor forma de proporcionar ferramentas aos alunos para
que possam construir suas identidades desta maneira é fornecendo-lhes não apenas os
conteúdos disciplinares, mas também ensinando-lhes a fazer a crítica histórica e a
pensar historicamente sobre como as identidades se constituíram e se constituem e por
que, muitas vezes, são apresentadas de maneira que
[...] parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com
o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver,
entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem
e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual
nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões ‘quem somos’ ou ‘de
onde nós viemos’, mas muito mais com as questões ‘quem podemos nos
tornar’, ‘ como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação
afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios’. (HALL, 2002,
p. 109)
Como destaca Borne (1998, p. 140), é preciso que os alunos saibam operar um
“ordenamento no tempo”, que tenham trabalhado o “pensamento lógico e crítico”, que
compreendam o significado de alteridade e, assim, consigam viver “de maneira
tolerante”. Quanto à identidade, Borne destaca que precisa haver no ensino a
preocupação de que “o fluxo de palavras e imagens” não sejam hierarquizados de
120
maneira que diferenças não se naturalizem como sinônimo de desigualdades (idem).
Assim,
[...] respeitar a diferença não pode significar ‘deixar que o outro seja como eu
sou’ ou ‘deixar que o outro seja diferente de mim tal como eu sou diferente
(do outro)’, mas deixar que o outro seja como eu não sou, deixar que ele seja
esse outro que não pode ser eu, que eu não posso ser, que não pode ser um
(outro) eu; significa deixar que o outro seja diferente, deixar ser uma
diferença que não seja, em absoluto, diferença entre duas identidades, mas a
diferença da identidade, deixar ser uma outridade que não é outra
“relativamente a mim” ou “relativamente ao mesmo”, mas que é
absolutamente diferente, sem relação alguma com a identidade ou com a
mesmidade. (Pardo, p. 101 Apud SILVA, 2014)
Mattos também nos lembra da necessidade de ressignificar a memória,
explicando os mecanismos de construção das identidades para, como Borne apresenta,
“construir cidadãos enraizados numa comunidade de memória livremente escolhida e
não temerosamente preservada, sem arrogância, aberta a outras solidariedades que não a
de nação” (BORNE, 1998, p.133).
Como destaca Candau “os direitos humanos são uma construção ocidental e
moderna e hoje necessitam ser ressignificadas numa perspectiva multicultural, para que
tenham relevância social e política, isto é, têm de incorporar as questões relacionadas à
diversidade cultural”. (CANDAU, 2012, p. 719) É esta perspectiva que é silenciada
pelos proponentes dos projetos relacionados ao Escola Sem Partido, quando defendem
seus projetos baseadas em antigos acordos
104
acerca dos direitos humanos.
Boto, baseando-se na ideia de Bobbio de que os direitos “nascem e se
desenvolvem essencialmente por conjunturas históricas de formações sociais
concretamente dadas”, defende que o direito à educação teria também se desenvolvido
em gerações - três, especificamente. O primeiro momento seria quando “o ensino torna-
se paulatinamente um direito público” e “todos adquirem a possibilidade de acesso à
escola pública”. O segundo momento seria quando a educação passaria a buscar “maior
qualidade do ensino oferecido” e o “reconhecimento de ideais democráticos internos à
vida escolar”. Já o terceiro momento, atual, se caracterizaria por tentar atender “à guisa
de justiça distributiva – grupos sociais reconhecidamente com maior dificuldade para
participar deste direito subjetivo universal – que é a escola pública, gratuita, obrigatória
e laica” (BOTO, 2005, p. 779). Candau, porém, amplia a problemática. Ela lembra que
“a educação como direito humano é considerada um direito social integrante da
104
O documento internacional sempre citado é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos também
chamada de Pacto de San José da Costa Rica que foi firmado em 22 de novembro de 1969 tendo como
um dos signatários o Estado Brasileiro que encontrava-se em um momento de ruptura da ordem
democrática.
121
denominada segunda geração de direitos, formulados e afirmados a partir do século
XIX”. (CANDAU, 2012, p. 720). Entretanto, como ela destaca logo em seguida,
[...] são muitas as referências à importância do direito à educação, mas
poucas as reflexões que têm se dedicado a aprofundar o conteúdo deste
direito numa perspectiva ampla, sem reduzi-lo à escolarização, abordagem
que constitui a tendência quase exclusiva dos trabalhos que vem sendo
realizados. (CANDAU, 2012, p. 720)
A autora cita em seu trabalho Sergio Haddad, na introdução do Relatório sobre o
direito à Educação:
Conceber a Educação como Direito Humano diz respeito a considerar o ser
humano na sua vocação ontológica de querer “ser mais”, diferentemente dos
outros seres vivos, buscando superar sua condição de existência no mundo.
Para tanto, utiliza-se do seu trabalho, transforma a natureza, convive em
sociedade. Ao exercitar sua vocação, o ser humano faz História, muda o
mundo, por estar presente no mundo de uma maneira permanente e ativa.
(HADDAD Apud CANDAU, 2012, p. 720)
Perspectiva que contraria a argumentação dos projetos relacionados ao Escola
Sem Partido, quando estes defendem o direito dos pais a que seus filhos não recebam
uma educação que contrarie suas crenças, em detrimento da defesa do direito dos
indivíduos de se apropriarem dos conhecimentos desenvolvidos por homens e mulheres
ao longo da História.
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