4.3 A discussão de gênero nas escolas
Como vimos, são relativamente recentes os ataques à chamada “ideologia de
gênero”, o que é justificado pelo fato de serem também recentes as tentativas de
discussão das questões de gênero na escola, apesar desta já fazer parte há um pouco
mais de tempo do debate acadêmico. Como apresenta Soihet e Pedro (2007), a História
das Mulheres se desenvolveu como campo de estudo no final dos anos 1960 e início dos
1970, no bojo das correntes revisionistas marxistas ligadas à História Social,
[...] cuja preocupação incide sobre as identidades coletivas de uma ampla
variedade de grupos sociais, até então excluídos do interesse da história:
operários, camponeses, escravos, pessoas comuns. Pluralizam-se os objetos
de investigação histórica, e, nesse bojo, as mulheres são alçadas à condição
de objeto e sujeito da história. A preocupação da corrente neomarxista com a
inter-relação entre o micro e o contexto global permite a abordagem do
cotidiano, dos papeis informais e das mediações sociais – elementos
fundamentais na apreensão das vivências desses grupos, de suas formas de
luta e resistência. Ignorados num enfoque marcado pelo caráter totalizante,
tornam-se perceptíveis numa análise que capte o significado de sutilezas,
possibilitando o desvendamento de processos de outra forma invisíveis.
(SOIHET e PEDRO, 2007, p.5)
Segundo a autora, foram estas transformações na historiografia articuladas à
explosão do feminismo que “tiveram um papel decisivo no processo em que as
mulheres são alçadas à condição de objeto e sujeito da história, marcando a emergência
da História das Mulheres”, campo que se desenvolveu primeiro nos EUA, depois na
França, na Inglaterra e no Brasil ainda durante a década de 1970. Neste primeiro
momento, os historiadores encaravam “as mulheres como uma categoria homogênea;
eram pessoas biologicamente femininas que se moviam em papéis e contextos
diferentes, mas cuja essência não se alterava” (SOIHET e PEDRO, 2007, p.6). Essa
interpretação teve como ponto positivo a afirmação de uma identidade coletiva que
contribuiu para o movimento feminista da década de 1970 e marcou o antagonismo
homem X mulher como central para política e para história.
No final desta década, entretanto, as tensões tanto dentro da História quanto
dentro do movimento feminista já deixavam claro a impossibilidade de se falar em uma
mulher universal. A análise deixou de enfocar as mulheres per si para examinar as
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várias relações sociais estabelecidas pelas mulheres, dentre elas as relações de gênero. A
diferença passou a ser levada em conta através da análise também da “classe, raça,
etnia, geração, sexualidade” (SOIHET e PEDRO, 2007, p.7).
No Brasil, durante a década de 1980, muitos trabalhos foram feitos por
historiadoras feministas pioneiras investigando a condição feminina e a história das
mulheres no país. Apenas em 1990, quando uma tradução do artigo de Joan Scott,
“Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, foi publicada no Brasil pela revista
“Educação e Realidade”, a identidade comum feminina foi mais contestada e os estudos
de estudos de gênero ganharam ainda mais força.
O texto seminal de Scott começava marcando sua posição política. Explicava
que o interesse pelas categorias de classe, raça e gênero demonstravam um
compromisso com uma história que incluísse a fala dos oprimidos e “com uma análise
do sentido e da natureza de sua opressão”, bem como levava cientificamente em
consideração o fato de que as desigualdades de poder estão organizadas segundo, no
mínimo, estes três eixos. (SCOTT, 1989, p. 4) A autora, citando Nathalie Davis em
texto de 1975 para explicar a necessidade de abordar as relações de gênero e não apenas
a história das mulheres, defendeu:
[...] eu acho que deveríamos nos interessar pela história tanto dos homens
quanto das mulheres, e que não deveríamos trabalhar unicamente sobre o
sexo oprimido, do mesmo jeito que um historiador das classes não pode fixar
seu olhar unicamente sobre os camponeses. Nosso objetivo é entender a
importância dos sexos dos grupos de gênero no passado histórico. Nosso
objetivo é descobrir a amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual
nas várias sociedades e épocas, achar qual o seu sentido e como funcionavam
para manter a ordem social e para mudá-la (SCOTT, 1989, p.2)
Scott explica que sua definição de gênero tem duas partes e várias subpartes, que
são ligadas entre si. A sua primeira proposição é que “o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” e a
segunda proposição é que “o gênero é uma forma primeira de significar as relações de
poder” (SCOTT,1989, p. 21). É a partir destas proposições que Scott desenvolve todas
as seguintes.
Assim, a primeira questão é que o gênero é utilizado para designar as relações
sociais entre os sexos e “o seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas,
como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de
subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força
muscular superior”. O gênero vai sempre explicitar as construções sociais, ou seja “a
criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às
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mulheres”. (SCOTT, 1989, p. 7) Esta leitura de gênero não exclui o corpo sexuado, mas
“coloca a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que
não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade”.
Vai mostrar como os papéis sexuais ou, nos termos de Scott, a identidade de gênero, é
uma categoria social imposta “sobre um corpo sexuado”. Em sua análise, destaca-se o
fato de nunca podermos falar apenas de um gênero, pois a questão é sempre relacional.
Segundo a autora, “a informação a respeito das mulheres é necessariamente informação
sobre os homens, que um implica no estudo do outro” (SCOTT, 1989, p. 7). Para Scott,
esse tipo de interpretação torna problemáticas as categorias “homem” e
“mulher” sugerindo que o masculino e o feminino não são características
inerentes e sim construções subjetivas (ou fictícias). Essa interpretação
implica também que o sujeito se encontra num processo constante de
construção e oferece um meio sistemático de interpretar o desejo consciente e
inconsciente, referindo-se à linguagem como um lugar adequado para a
análise. (SCOTT, 1989, p. 16)
Outra questão muito importante para Scott é que os gêneros são entendidos
como conceitos normativos, ou seja, buscariam limitar e conter as suas possibilidades.
Segundo Scott, “esses conceitos são expressos nas doutrinas religiosas, educativas,
científicas, políticas ou jurídicas e tipicamente tomam a forma de uma oposição binária
que afirma de forma categórica e sem equívoco o sentido do masculino e do feminino”.
(SCOTT, 1989, p. 21) Nesse processo, as identidades dominantes não são apresentadas
como uma das possibilidades e, sim, como a única possível. Estas são apresentadas
como fruto de consenso e não de conflitos. Segundo a autora,
[...] da mesma forma que os sistemas de significações, as identidades
subjetivas são processos de diferenciação e de distinção, que exigem a
supressão das ambiguidades e dos elementos opostos a fim de assegurar (de
criar a ilusão de) uma coerência e uma compreensão comuns. O princípio de
masculinidade baseia-se na repressão necessária dos aspectos femininos – do
potencial bissexual do sujeito – e introduz o conflito na oposição entre o
masculino e o feminino. (SCOTT, 1989, p. 15)
Scott também acha importante destacar “as maneiras como as sociedades
representam o gênero, o utilizam para articular regras de relações sociais ou para
construir o sentido da experiência” e como as instituições, as organizações sociais e a
política influem nessa aparência de permanência eterna da representação binária dos
gêneros. Como o parentesco, o mercado de trabalho, a educação, os sistemas políticos,
dentre outras, fazem parte do mesmo processo de construção das identidades de gênero
que será a base de um acesso diferencial aos recursos materiais e simbólicos, de forma
que a “política constrói o gênero e o gênero constrói a política” (SCOTT, 1989, p. 23).
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A política, inclusive, será um dos campos preferidos de análise de Scott, justamente por
entender que
o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado
dentro e por esse mundo. Esse uso rejeita a validade interpretativa da ideia
das esferas separadas e defende que estudar as mulheres de forma separada
perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tem muito
pouco ou nada a ver com o outro sexo. [...] como podemos explicar no seio
dessa teoria a associação persistente da masculinidade com o poder e o fato
de que os valores mais altos estão investidos na virilidade do que na
feminilidade? (SCOTT, 1989, p.7)
Tomado de empréstimo da gramática, onde desinências diferentes marcam sexos
diferentes para pessoas e coisas, nas ciências sociais “gênero” vai marcar a
diferenciação social baseada na diferenciação sexual/genital. Soihet destaca que
‘Gênero’ dá ênfase ao caráter fundamentalmente social, cultural, das
distinções baseadas no sexo, afastando o fantasma da naturalização; dá
precisão à ideia de assimetria e de hierarquia nas relações entre homens e
mulheres, incorporando a dimensão das relações de poder; dá relevo ao
aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, de que nenhuma
compreensão de qualquer um dos dois poderia existir através de um estudo
que os considerasse totalmente em separado, aspecto essencial para
‘descobrir a amplitude dos papeis sexuais e do simbolismo sexual nas várias
sociedades e épocas, achar qual o seu sentido e como funcionavam para
manter a ordem social e para mudá-la’. (SOIHET, 2007, p.8)
Após quase meio século de pesquisas de alta qualidade sobre a história das
mulheres e das relações de gênero, não se contesta mais este campo de estudo.
Entretanto, como denuncia Scott, o campo “permanece marginal em relação ao conjunto
da disciplina – o que poderia ser aquilatado pelos manuais, programas universitários e
monografias” (SOIHET, 2007, p. 9). Soihet, apresentando Scott, destaca que,
Assim, não teria sido suficiente aos historiadores das mulheres provar que as
mulheres tiveram uma história ou que as mulheres participaram das
mudanças políticas principais da civilização ocidental. Após um
reconhecimento inicial, a maioria dos historiadores descartou a história das
mulheres ou colocou-a em um domínio separado – ‘as mulheres têm uma
história separada da dos homens, portanto deixemos as feministas fazer a
história das mulheres que não nos concerne necessariamente’. Quanto à
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