3.3 O fortalecimento do ensino religioso como componente curricular
Pelo acima exposto, é possível apontar uma tendência por parte do poder público
de naturalizar o processo de adesão individual a uma determinada religião ou mesmo ao
culto a um Deus monoteísta nos moldes judaico-cristãos,
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assim como a tendência a
apresentar as religiões como capazes de promover uma educação voltada para a
tolerância, o que é discutível, uma vez que é notória a intolerância religiosa de algumas
confissões religiosas. Esta mesma tendência pode ser notada no Estado do Rio de
Janeiro, como vemos abaixo na declaração da Coordenadora de Educação Religiosa da
Secretaria Estadual de Educação
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:
Ao contrário do que muitos dizem, o objeto do Ensino Religioso não é o
Ecumenismo ou o diálogo Inter-religioso. Nem mesmo a Ética e os Valores,
se assim fosse, não se justificaria o Ensino Religioso como disciplina, pois
outras, tais como Filosofia, a Sociologia dariam conta desses conteúdos de
maneira muito mais eficaz e, provavelmente, de maneira mais interessante.
Também não se trata da História das Religiões, isso a História pode fazer
melhor do que qualquer professor de Religião. [...] Por outro lado, conceber
as aulas de religião como uma aproximação ao Fenômeno Religioso não nos
parece suficiente. [...] Então, o Ensino Religioso precisa ajudar aos
educandos a dirigirem o olhar para o mistério, que, segundo Guitton, é a
própria realidade. Segundo ele, a teoria quântica não prova a existência de
Deus, pois Deus não é da ordem da demonstração, “mas é um ponto de apoio
científico às concepções propostas pela religião”. É dessa relação entre
religiosidade e realidade que surge a epistemologia do Ensino Religioso,
onde cada religião tem seu objeto de conhecimento, seu método, sua teoria.
(LOPES, 2005 Apud CAVALIERE, 2006) (Sem Paginação)
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Segundo o Decreto 46.802/02, o conselho deveria ser formado por instituições lideradas pela Igreja
Católica, assim como por ‘outras entidades religiosas’, não nomeadas.
92
Poder-se-ia incluir a religião Islâmica no mesmo modelo de religião monoteísta, inclusive por vir da
mesma linhagem de religiões abraâmicas. Entretanto, a grande campanha da mídia por atribuir à religião
islâmica o rótulo de terrorista e o espaço quase nulo para estudo desta religião na Escola fazem com que,
a meu ver, ela não esteja incluída entre estas religiões naturalizadas.
93
A autora não cita o nome da então Coordenadora de Educação Religiosa da Secretaria Estadual de
Educação.
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Segundo Cavalieri, a declaração “não deixa dúvidas sobre o esforço em
diferenciar e especializar a disciplina, tornando-a efetivamente uma disciplina de
formação religiosa no interior da escola pública” (CAVALIERI, 2006.). Ainda segundo
essa autora,
[...] a religião chega à escola com um propósito muito claro. A escola pública
deve ser um espaço auxiliar dos templos religiosos na divulgação e
consolidação de suas doutrinas e dogmas de fé. A escola, de forma canhestra,
parece resistir a isso, pelas mãos dos próprios professores de ensino religioso,
em sua recusa ao confessionalismo. Em geral, a receptividade das escolas ao
ensino religioso pareceu-nos sempre muito ambígua. Há tolerância, mas há
incômodo. Há aceitação, mas há muitas dúvidas. O fato é que a pobreza
cultural da escola brasileira, sua renitente ineficiência, ao lado da crise social
prolongada deixam o campo aberto para a penetração de propostas
salvacionistas, estranhas à concepção moderna, obrigatória e universal de
educação escolar. (CAVALIERI, 2006.)
Tendo realizado trabalhos de campo, a autora destaca que pouco viu nas escolas
visitadas no Rio de Janeiro “atividades artísticas, culturais, esportivas, comunitárias ou
de lazer, capazes de enriquecer o ambiente escolar e as vidas das crianças e das famílias
que as freqüentam”. Ainda de acordo com ela, nas 14 escolas estudadas, encontrou
apenas 5 bibliotecas em funcionamento e, ainda assim, muito precárias. Não existiam
profissionais de outras áreas para apoiar os estudantes como psicólogos, assistentes
sociais ou profissionais de saúde (CAVALIERI, 2006). Segundo a autora, seria
impossível não comparar esta estrutura com o programa do Centro Integrado de
Educação Pública (CIEP), com proposta de educação integral, laica e com peso nas
ações culturais. Para ela,
[...] o fortalecimento da presença da religião na escola pública vem na exata
medida em que a ação educativa escolar se enfraquece. Revela, de um lado,
esse fracasso do campo educacional e, de outro, a capitulação do Estado a
uma ação mais efetiva no processo de socialização e incorporação social das
grandes massas da população. (CAVALIERI, 2006)
Nas entrevistas que realizou
94
, a autora constatou que parte significativa dos
professores e diretores ouvidos encarava o ensino religioso “como um caminho
importante para a formação dos alunos e para o enfrentamento de comportamentos
indesejados, agressividade e resistência à escola” (CAVALIERI, 2006). Assim,
[...] a defesa da religião como parte da formação integral do homem, presente
inclusive no texto da LDB, leva à conclusão lógica de que os educados sem
religião são carentes de algo. Assim, as mazelas sociais poderiam estar
94
A autora e sua equipe de pesquisa realizaram 96 entrevistas com professores da rede estadual de
educação do Rio de Janeiro entre professores de ensino religioso, professores de outras disciplinas, e
professores que atuavam na equipe de direção. 244 alunos também foram ouvidos através do
preenchimento de questionários. Segundo a autora, a pesquisa visava conhecer e compreender a situação
instalada nas escolas após a chegada dos professores de Ensino Religioso recém empossados.
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relacionadas a essa ausência. Uma de nossas conclusões, após realizar
entrevistas e observações durante dois anos, é que a ameaça do descontrole
social tem sido o fundamento para a atuação do ensino religioso nas escolas
do Rio de Janeiro e está na base do discurso dos professores que o defendem.
(CAVALIERI, 2006)
Para a autora, a religião tem sido um “simulacro dos ‘Temas Transversais’
previstos nos PCN” e o ensino religioso está sendo feito de forma utilitária. O que, se
por um lado, representaria uma recusa à
“utilização da escola como ‘igreja’”, por
outro lado representaria “a permissão de uma colonização não explícita da escola pelo
ethos religioso” que, na visão desta, poderia ser mais perigosa que uma atuação direta.
A autora defende também que a “invasão de um campo só se dá quando há espaços
desocupados” (CAVALIERI, 2006) e afirma que,
[...] num outro cenário, de enriquecimento da experiência escolar laica, a
formação geral, integral, seria preenchida por ações que oferecessem sentidos
à formação dos indivíduos, sentidos esses que, na sociedade contemporânea,
não estão dados de antemão, como já estiveram nas sociedades tradicionais.
Utopias, ideais, valores morais, sensibilidade estética, exercício da crítica,
produzem os nexos entre o que se aprende e o que se vive. A formação
integral é aquela que propicia a experimentação e a (re)construção desses
nexos, num complexo e longo processo de desenvolvimento. Esse projeto,
entretanto, ainda não foi assumido pela cultura escolar brasileira posterior à
ampliação do acesso das camadas populares à educação básica.
(CAVALIERI, 2006)
É possível, no entanto, questionar essa perspectiva de que apenas espaços
desocupados sofrem invasão. Embora seja procedente argumentar que haja maior
predisposição a aceitar o ensino religioso quando este se apresenta como a grande
solução para os problemas de socialização dos alunos na escola, não há como afirmar
que, mesmo que a escola fosse estruturada fisicamente e com toda a equipe de
profissionais necessária para atender às necessidades dos alunos, não haveria aceitação
da entrada do ensino religioso nas escolas e, muito menos, que não haveria a tentativa
dos grupos religiosos de inseri-la.
Cavalieri conclui apresentando dois importantes pontos para reflexão. O
primeiro é que, com o crescimento das religiões evangélicas entre as camadas
populares, transformar religião em matéria obrigatória da escola pública pode servir
apenas para aumentar os embates religiosos. Outro ponto é o paralelo que a autora traça
entre o que está acontecendo no Brasil hoje e o que aconteceu na Itália do início do
século XX. Para ela,
[...] a realidade assim constituída, guardadas as devidas proporções, faz
lembrar o quadro descrito por Gramsci (1968), sobre as Concordatas entre o
Estado italiano e a Igreja Católica, no início do século XX: O estado
consegue [...] que a Igreja não dificulte o exercício do poder, mas favorece-o
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e sustenta-o, assim como uma muleta sustenta um inválido. A Igreja, assim,
compromete-se com uma determinada forma de governo a promover aquele
consentimento de uma parte dos governados que o Estado, explicitamente,
reconhece não poder obter com os seus meios. Nisto consiste a capitulação
do Estado, pois, de fato, ele aceita a tutela de uma soberania externa da qual
reconhece, na prática, a superioridade. (CAVALIERI, 2006)
Vimos que a concordata contraria a LDB/96, mas ainda há inúmeras propostas
para alterar essa lei federal. Um exemplo é o PLS 2/2012 (SENADO FEDERAL, 2012),
do senador Sérgio Souza (PMDB-PR), aprovado pelo Senado e enviado à Câmara dos
Deputados em novembro de 2012. O projeto pretende inserir no currículo do ensino
fundamental a disciplina Cidadania, Moral e Ética, e, no ensino médio, a disciplina
Ética Social e Política. A justificativa apresentada pelo senador no projeto foi a
seguinte:
Estou convencido de que, dessa forma, estaremos oferecendo a nossa
sociedade instrumentos para o fortalecimento da formação de um cidadão
brasileiro melhor, por um lado, pela formação, ensinando conceitos que se
fundamentam na obediência a normas, tabus, costumes ou mandamentos
culturais, hierárquicos ou religiosos; por outro lado, pela formação ética,
ensinando conceitos que se fundamentam no exame dos hábitos de viver e do
modo adequado da conduta em comunidade, solidificando a formação do
caráter; e finalmente para sedimentar o exercício de uma visão crítica dos
fatos sociais e políticos que figuram, conjunturalmente, na pauta prioritária
da opinião pública, oferecendo aos jovens os primeiros contatos com as
noções de democracia, sem caráter ideológico, ensinando-o a construir seu
pensamento político por sua própria consciência. (PLS n. 2/2012 Apud
CUNHA, 2014b, p. 373)
Segundo Cunha, Daniela Patti do Amaral, em seu texto Ética, Moral e Civismo:
difícil consenso (2007), analisa 13 projetos de lei apresentados por deputados e
senadores no período entre 1997 e 2006 que procuravam “inserir no currículo do ensino
fundamental, do ensino médio e até do ensino superior disciplinas ou temas transversais
(com e sem esse nome) sob diversos títulos, montados a partir dos termos Moral,
Civismo, Cidadania, Ética, Direitos e Deveres”, a fim de resgatar valores supostamente
perdidos pela sociedade. A autora concluiu perguntando se “seria a inclusão da Ética e
da Moral e Cívica na escola um movimento disfarçado para ocupar o lugar do Ensino
Religioso de forma obrigatória e não facultativa?” (AMARAL, 2007 Apud CUNHA,
2009, p. 416). Como já mencionamos anteriormente, a moral da Educação Moral e
Cívica é a moral religiosa católica ou cristã.
De fato, como entendem Almeida e Reis, “uma estratégia da bancada católica de
se institucionalizar como parte da democracia brasileira seria de manter o vínculo dos
ditames da fé católica na sociedade brasileira” (ALMEIDA E REIS, 2015, p.106).
Acreditamos que podemos expandir o raciocínio dos católicos também para os
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evangélicos. Segundo Silveira, “de modo geral, a alteração do peso de evangélicos e
católicos no campo religioso nacional trouxe mudanças”, mas ele mesmo destaca que
“no que tange às tendências conservantistas - sobretudo em relação aos direitos das
minorias, ao aborto, à presença na política e no espaço público -, há muito mais
continuidade entre esses dois grandes grupos religiosos do que rupturas. ” (SILVEIRA,
2015, p. 26). Reis e Almeida lembram que “os católicos no Congresso Nacional têm
trabalhado pela defesa do modelo de família tradicional, contra o aborto e contra o
casamento gay – bandeiras também defendidas pela bancada evangélica”. (ALMEIDA e
REIS, 2015, p. 72)
O próprio coordenador da Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica
Romana, deputado Givaldo Carimbão, destacou isso em entrevista para a rádio Câmara
(DEPUTADOS, 2015) na ocasião do lançamento da frente, em maio de 2015. Para ele,
a Frente Católica, mesmo nunca tendo sido oficializada, sempre existiu e que agora,
oficializada, vai compor com a Frente Evangélica uma vez que, apesar das divergências
na doutrina como o culto à virgem Maria, os dois grupos têm uma pauta comum e
afirma, também, que a lei dos homens não pode se contrapor à lei de Deus.
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