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O trecho a seguir é um
fragmento da obra
O Fim
do Homem Soviético, escrito por Svetlana Alek-
siévitch, ganhadora do Prêmio
Nobel de Lite-
ratura em 2015. Ela nasceu na região da União
Soviética, em 1948. A partir dessas informa-
ções e da leitura do trecho a seguir, responda
ao que se pede:
Relato 1
Uma noite, vínhamos do cinema, um homem jazia numa
poça de sangue. Nas costas tinha um buraco de bala na gabardi-
na. Ao lado dele estava um polícia. Foi a primeira vez que vi uma
pessoa assassinada. Depressa me acostumei a isso. [...] Todas as
manhãs encontravam um cadáver no pátio e nós já nem estre-
mecíamos. Tinha começado o capitalismo a sério. Com sangue.
Eu
esperava sentir um choque, mas não sentia. Depois de Stalin
ficamos com uma atitude diferente em relação ao sangue…
Lembramo-nos de como os nossos matavam os nossos… E das
mortes em massa de pessoas que não sabiam por que as mata-
vam… Isso manteve-se, está presente na nossa vida. Crescemos
entre carrascos e vítimas… Para nós é normal vivermos juntos.
Não há fronteira entre o estado de paz e o estado de guerra.
Relato 2
Por que não condenamos Stalin? Eu dou-lhe a resposta…
Para condenar Stalin, era preciso condenar os nossos familia-
res e conhecidos. As pessoas mais chegadas.
Falo-lhe da minha
família… O meu pai foi preso em trinta e sete; graças a Deus,
voltou, mas cumpriu dez anos. Voltou e tinha muita vontade
de viver… Ele próprio se admirava de querer viver depois de
tudo o que tinha visto… Isso não acontecia a todos, nem de
longe… A minha geração cresceu com os pais que voltavam
das prisões ou da guerra. A única coisa que eles nos podiam
contar era acerca da violência. Da morte.
Raramente se riam,
estavam muito tempo calados. E bebiam… bebiam… No fim
de contas tornavam-se alcoólicos. Uma segunda variante…
Aqueles que não eram presos receavam que os prendessem.
Tudo isto durava não um mês ou dois, mas anos – anos! E se
não os prendiam, punha-se a questão: por que é que prendem
todos, e a mim não? O que é que eu faço de errado? Podiam
prender, ou podiam mandar trabalhar para o Ministério do
Interior… O Partido pede, o Partido ordena. A escolha era de-
sagradável, mas muitos tinham de fazê-la. E agora acerca dos
carrascos… Pessoas comuns, não horríveis. O meu pai foi de-
nunciado por um vizinho… o tio Iura…
Por uma ninharia, como
dizia a minha mãe. Eu tinha 7 anos. O tio Iura levava-me à pesca
com os filhos dele, levava-me no cavalo. Consertava a nossa
vedação. Compreende, temos um retrato completamente di-
ferente do carrasco – um homem comum, até bondoso… Nor-
mal… Prenderam o meu pai e alguns meses depois levaram um
irmão dele, meu tio. No tempo de Iéltsin
deram-me o processo
dele, havia lá diversas denúncias, uma delas assinada pela tia
Ólia… Uma sobrinha… Uma mulher bonita, alegre… Cantava
bem… Quando ela já era velha, perguntei-lhe: ‘Tia Ólia, fala-
-me do ano de trinta e sete…’ ‘Esse foi um ano feliz na minha
vida. Estava apaixonada’, respondeu-me ela… O irmão do meu
pai não voltou para casa. Desapareceu. Na prisão ou num cam-
po de detenção, não se sabe. Para mim era difícil, mas mesmo
assim fiz a pergunta que me atormentava: ‘Tia Ólia,
por que
é que fizeste isso?’ ‘Onde é que viste uma pessoa honesta no
tempo de Stalin?!’ (Silêncio) E havia ainda o tio Pável, que ser-
via na Sibéria, nas tropas do Ministério do Interior… Compre-
ende, não existe o mal quimicamente puro… Não eram apenas
Stalin, Beria… Era também o tio Iura, e a bonita tia Ólia…
ALEKSIÉVITCH, Svetlana.
O fim do homem soviético.
Portugal: Porto Editora, 2015.
a) De que maneira o primeiro relato descreve
a passagem do comunismo ao capitalismo
na região da União Soviética? No relato,
há uma valorização do período
comunista
como um período de paz e segurança para
os indivíduos que viviam na União Soviética?
b) O segundo relato é uma reflexão sobre os
crimes cometidos pelo regime stalinista e
o envolvimento de pessoas comuns nessa
questão. De que modo a pessoa entrevis-
tada justifica que a população da União
Soviética nunca tenha condenado Stalin
por seus crimes?
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