A crise de 2001 e a normalização posterior
Ante esta situação crítica, as eleições legislativas de outubro
de 2001 deram a vitória ao justicialismo e os mesmos deputados
radicais eleitos tinham atitudes de forte rejeição ao presidente.
O que houvera correspondido fazer nesse momento, segundo
a nova constituição, era que a agora maioria peronista elegesse
um Chefe de Gabinete, que de fato tomaria as rédeas do governo,
ficando De la Rúa como figura decorativa. Isso não teve efeito,
porque, ante a gravidade da crise, os peronistas não queriam
assumir essa responsabilidade e, além disso, não se acreditava
na factibilidade do mecanismo constitucional para a mudança
de governo. Ante a acumulação de tensões houve um protesto
generalizado em duas frentes. Por um lado, os poupadores, que
se consideravam enganados e expropriados, iniciaram uma série
de protestos, com grande afluência de público, o que concretizava
o repúdio que já se havia dado nas urnas. Era a classe média que
237 Pablo Gerchunoff e Lucas Llach, Los desafíos económicos argentinos. Buenos Aires: Mercado, 1998;
Guillermo Cruces e Leonardo Gasparini, Desigualdad en la Argentina: una revisión de la evidencia
empírica. Desarrollo Económico, janeiro-março e abril-junho 2009.
419
Um pouco de história recente
abandonava o governo que ela mesma elegeu. Por outro lado,
em bairros pobres e outros da periferia urbana, iniciou-se uma
onda de saques, com pouca vigilância policial, o que fez pensar
que as estruturas político-clientelistas da Grande Buenos Aires
haviam formado um complô para criar “zonas liberadas”. Afinal, a
repressão, que se concentrou na Praça de Maio, deixou uns trinta
mortos, obrigando o presidente a renunciar. Seu vice-presidente
Juan Carlos Chacho Álvarez já havia se retirado antes do governo
e, portanto, correspondia ao congresso designar um sucessor.
Como nenhum dos principais atores da política queria assumir o
cargo, decidiu-se encarregar um ator de menor peso: o caudilho
e governador de San Luis Adolfo Rodriguez Saá. A condição era
que ao término de dois meses convocasse eleições nacionais. Mas,
tentado talvez pelo poder ou considerando que era impraticável e
indesejável realizar eleições em meio a tal crise, começou a traçar
projetos de maneira a permanecer os dois anos que faltavam
para completar o mandato presidencial. Mais ainda: informou
que seriam pagos os vencimentos da dívida externa. Tal decisão,
nada consensual, fez com que a maioria do congresso lhe retirasse
a confiança e, diante da perspectiva de novas mobilizações nas
ruas acompanhadas de violência, Rodriguez Saá renunciou uma
semana depois de assumir. Agora sim não havia mais remédio para
os principais dirigentes, além de encarar sua responsabilidade
238
.
Finalmente o congresso nomeou para a presidência Eduardo
Duhalde, que iniciou um governo de coalizão, com dois ministros
radicais e um do Frepaso. Conduziu uma bem-sucedida transição,
238 Tomás Bril Mascarenhas, El colapso del sistema partidario en la Ciudad de Buenos Aires. Una
herencia de la crisis argentina de 2001-2002. Desarrollo Económico, out-dez 2007; Isidoro Cheresky,
En nombre del pueblo y de las convicciones: posibilidades y límites del gobierno sustentado en la
opinión pública. PostData (Buenos Aires), n. 9, setembro 2003; e do mesmo, La innovación política:
política y derechos en la Argentina contemporánea. Buenos Aires: Eudeba, 1999; Isidoro Cheresky
e Inés Pousadela (orgs.), El voto liberado. Elecciones 2003: perspectiva histórica y estudio de casos.
Buenos Aires: Biblos, 2004.
420
Torcuato S. Di Tella
enquanto a economia começava a melhorar. Para o início de 2003,
foram convocadas eleições presidenciais e diante da dificuldade,
no Justicialismo, de designar um candidato, apresentaram-se três
de maneira independente: Carlos Menem, Adolfo Rodríguez Saá
e o governador de Santa Cruz, o renovador Néstor Kirchner. Os
radicais apresentaram um candidato que só conseguiu 2% dos
votos, devido ao desprestígio em que havia caído o partido, do qual
haviam se afastado dois fortes contingentes, um encabeçado por
Ricardo López Murphy, para a direita, e outro dirigido por Elisa
Carrió, para o centro-esquerda moralista. No final, houve quase
um empate entre Menem e Kirchner, mas o estado da opinião
pública fazia de Menem quase seguramente um contundente
enjeitado, induzindo-o a renunciar à concorrência e assim foi
consagrado Kirchner como presidente (2003-2007).Nessa ocasião,
a direita apoiou em parte a Menem (dando talvez a metade dos
votos que obteve o ex-presidente), a centro esquerda a Kirchner da
mesma maneira e o peronismo dividiu-se entre Menem, Kirchner,
e Rodríguez Saá (que captou poucos votos não peronistas).
O tradicional caudal radical esparramou-se entre todos, mas
principalmente por López Murphy e Carrió. O governo de Kirchner
concitou muitas esperanças na população e beneficiou-se com uma
forte recuperação econômica. Além disso, avançou na defesa dos
direitos humanos, no castigo a culpados da ditadura e na renovação
da suprema corte, na qual colocou juízes muito independentes.
Preocupou-se ainda em obter o apoio dos sindicatos e de
grupos piqueteiros, que lhe davam um controle das ruas, assim
como o dos clássicos intendentes da Grande Buenos Aires, a frente
de estruturas clientelistas pouco prestigiadas, mas não muito
diferentes das que fortaleceram o apoio popular de Roosevelt
421
Um pouco de história recente
nos grandes centros urbanos dos Estados Unidos. Seu mandato
terminou com 60% de aprovação nas pesquisas
239
.
Para a sucessão, elegeu-se sua esposa Cristina Fernández,
que conseguiu 45% do voto popular, o que tornou desnecessário
o ballottage. Ela tinha uma longa trajetória política como
senadora, inclusive mais conhecida no passado em nível nacional
que seu esposo, mas o fato de que o oficialismo apelasse para
uma pessoa tão relacionada com o chefe de Estado que deixava
o cargo independentemente de seus méritos, evidenciava um
enfraquecimento do sistema partidário argentino. Os ventos
econômicos começaram a soprar de maneira menos favorável,
em parte por causa da crise financeira internacional desatada no
começo de sua gestão. Nota-se, contudo, que, nessa ocasião, o
impacto na Argentina foi muito menor que nos próprios Estados
Unidos, com escasso aumento do desemprego e sem quebras
bancárias.
O que acontecerá no futuro só os zelosos deuses o sabem,
já que eles proibiram aos humanos conhecê-lo. E se é certo o
que dizia Chou-en-Lai, que era muito cedo para ter uma opinião
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