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Anna Maria Manzolini,
Auto-retrato em cera,
Museo di Palazzo Poggi, Universidade de Bolonha, Itália.
Anna Maria Manzolini, Mãos em cera,
Museo di Palazzo Poggi, Universidade de Bolonha, Itália.
FO R A DA O R D E M
A A RTE S E M H I STÓ R I A
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do corpo ou o seu interior, expondo aquilo que os olhos não vêem,
culmina com um auto-retrato em cera que se poderia considerar um
dos mais curiosos exemplos de auto-representação artística. Morandi
esculpe-se a si própria no acto de abrir um cérebro humano com o
seu bisturi, provavelmente para explicar os mistérios da anatomia ce-
rebral aos seus alunos da Universidade de Bolonha. Ela identifica-se,
simultaneamente, como sendo a mulher de ciência e a artista, que se
reproduz a si própria de forma hiper-realista. Só a cera, utilizando as
possibilidades quer da pintura, quer da escultura, conseguia alcançar
esta verosimilhança, para a qual, depois, contribuíam outros adereços,
como o uso de tecido para criar o vestido que cobria a carnação ou
mesmo a implantação de cabelo verdadeiro. Além de se esculpir a si
própria, Morandi também esculpe o seu marido, companheiro nesta
mesma arte, mas, curiosamente, não o representa com as marcas da
profissão. Ele surge representado apenas como um homem, ela é uma
mulher, mas é também quem tem a faca e, neste caso, o cérebro na mão.
Poderíamos comparar este auto-retrato com tantos outros, nos
quais as mulheres artistas se representam no gesto de pintar ou, pelo
menos, com os adereços da arte. Contudo, Morandi não se apresenta
a esculpir uma das suas muitas “mãos” ou os seus fetos no interior do
útero materno, nem mesmo um cérebro humano. Apresenta-se, sim, no
labor de anatomista que, imbuída do saber sobre o corpo, o transmi-
te aos seus alunos de uma forma prática e visual, mostrando-lhes um
cérebro “verdadeiro”. Os observadores do auto-retrato de Morandi são,
assim, convidados a ocupar o espaço dos aprendizes da arte e da ciência
que ela dominava – estão simultaneamente a assistir a uma representa-
ção da dissecação de um cérebro verdadeiro, realizada por Morandi, e
a observar a reprodução material do cérebro em cera que também era
o ofício da mesma pessoa. Num só gesto, o cérebro funciona como ob-
jecto e como representação do objecto, enquanto Morandi se apresenta
tanto no papel de anatomista (com o objecto) como no de artista (com
a reprodução do objecto), num jogo de representações que poderia ser
comparado ao que Velázquez também realizou nas suas
Meninas.
Este auto-retrato de Morandi deve também ser visto no contexto
de uma tradição de máscaras, bustos e retratos em cera que se desen-
volveu desde a Antiguidade e que teve uma grande visibilidade em de-
terminadas zonas geográficas e em determinados períodos. Em Por-
tugal, por exemplo, existe notícia da portuense Maria Josefa Angélica
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