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As muitas excepções a esta tendência das mulheres para o retrato
e o auto-retrato não foram suficientes para impedir a criação do estere-
ótipo de que as mulheres só se dedicavam ao retrato e, mais tarde, tam-
bém às naturezas-mortas. A força desta chave de leitura da arte femini-
na fez com que, por exemplo, Filippo Baldinucci, que até se mostrou
especialmente aberto às possibilidades artísticas das mulheres, como o
demonstram vários dos seus textos, escrevesse que Artemisia Gentiles-
chi era conhecida sobretudo pelos seus retratos e naturezas-mortas
112
.
Ora, um olhar sobre a sua obra é suficiente para nos apercebermos de
que estes dois géneros estão especialmente ausentes das escolhas pictó-
ricas de Artemisia. Poderíamos sugerir que algo de semelhante se passa
com Josefa de Óbidos que, tendo pintado muitos outros géneros, é co-
nhecida sobretudo pelas suas naturezas-mortas, mais associadas a um
mundo feminino do que os temas religiosos e históricos ou a pintura de
frescos em igrejas a que ela também se dedicou.
Artemisia apresenta-nos uma subversão acrescida: se é certo
que as mulheres têm um lugar de destaque nas suas escolhas temáti-
cas, como que obedecendo à recomendação de Boccaccio, estas são
mulheres muito distantes dos significantes adscritos à “mulher” da-
quele período. Como afirma Mary D. Garrard, olhar para a obra de
Gentileschi segundo uma perspectiva de género implica “reconhe-
cer o desvio da artista a uma norma retórica na sua reinvenção das
personagens femininas, assim como ter consciência dos riscos em
impor a Artemisia expectativas estereotipadas de género”
113
. A artis-
ta bolonhesa Elisabetta Sirani (1638-1665), que, apesar da sua mor-
te prematura, foi autora de uma obra extremamente prolixa, também
enveredou por vários temas onde não imperam nem as naturezas-
-mortas nem os retratos. Tal como acontecera com Artemisia, Sirani
recorreu a uma iconografia de mulheres da Antiguidade que se dis-
tinguiram pelo seu carácter forte ou afirmativo
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