A A RTE S E M H I STÓ R I A
86
pouco tempo, pensava tratar-se do seu mestre Bernardino Campi, mas
uma reavaliação recente veio identificar a personagem masculina como
sendo o também pintor Orazio Vecellio, filho de Ticiano, que Sofonisba
teria conhecido em Milão, a caminho de Madrid. Neste processo, ela pa-
rece anular-se como autora para assumir o papel de modelo, enquanto
atribui à personagem masculina (amantes ou rivais?) a função que, na
realidade, é ela que protagoniza, ao assinar o quadro
107
. Tendo em conta
que Anguissola se tornou numa referência exemplar para as mulheres ar-
tistas que se seguiram e que nela encontravam a prova das possibilidades
de se ser simultaneamente mulher e artista, é provável que Lavinia Fon-
tana a tenha tido presente ao realizar os seus auto-retratos
108
.
Num deles,
Auto-retrato ao clavicímbalo acompanhada de uma cria-
da, de 1577, Lavinia Fontana representa-se a tocar o clavicímbalo, símbo-
lo de castidade que já Anguissola usara num dos seus auto-retratos e que
outras artistas usarão
109
. Uma inscrição latina pintada na tela refere o uso
metafórico do espelho como forma de conhecimento interior, enquanto
um cavalete ao fundo da sala, onde se encontra a tocar o instrumento
musical, nos remete para a sua principal vocação. Ao realizar a pintura
como presente para o futuro sogro, nas vésperas do seu casamento, La-
vinia apresenta-se como uma mulher virtuosa em talentos e formação,
digna da mão do seu filho. Uma criada, essa outra mulher que costuma
aparecer em segundo plano e que tantas vezes acompanha a protagonista
107.
Sofonisba Anguissola,
Orazio Vecellio a retratar a própria Sofonisba, 1559,
Pinacoteca Nazionale de Siena, Siena. Ver reavaliação recente em Rocío de la
Villa, “Artistas Heroínas”, Rocío
de la Villa, Cármen Gallardo, Guillermo
Solana e
Amélia Valcárcel,
Heroínas (Madrid: Museo Thyssen-Bornemisza; Fundanción Caja
Madrid, 2011), Catálogo de Exposição, pp. 53-79, p. 70.
108.
No contexto de uma Contra-Reforma definidora da conjuntura
ideológica em que se insere a sua prática artística, Lavinia Fontana refere numa
carta que Sofonisba Anguissola lhe servia de inspiração por ser uma artista “cristã”,
não mencionando, porém, o facto de ela ser mulher:
in Vera Fortunati, “Lavinia
Fontana: a woman artist in the age of the counter-reformation”,
Lavinia Fontana of
Bologna 1552-1614
(Milão; Washington: Electa; The National Museum of Women
in the Arts, 1998), pp. 13-31, p. 13. Ver também o Catálogo da Exposição que se
realizou, quatro anos antes, em Itália:
Lavinia Fontana (1552-1614), Vera Fortunati, ed.
(Milão: Electa, 1994) e Caroline P. Murphy,
Lavinia Fontana: A painter and her patrons in
sixteenth-century Bologna
(New Haven e Londres: Yale University Press, 2003).
109.
Lavinia Fontana,
Autoritratto al clavicembalo con domestica, 1577
(Accademia
Nazionale di San Luca, Roma); Sofonisba Anguissola,
Autoritratto alla
spinetta
, s.d. (Museu de Capodimonte, Nápoles); Sofonisba Anguissola,
Autoritratto
alla spinetta con la fantesca
, 1550 (Earl Spencer Collection, Althorp Park). Sobre o
assunto, ver: Angela Ghirardi, “Lavinia Fontana allo spechio. Pittrici e autoritratto
nel secondo Cinquecento”, Fortunati, ed.,
Lavinia Fontana (1552-1614), pp. 37-52.
87
das representações pictóricas, segura-lhe o livro onde se lêem as pautas.
De Artemisia a Mary Cassatt ou a Paula Rego, são inúmeros os exemplos
de presença da “criada”, a personagem secundária que está lá sem estar
e que, quase sempre, acompanha, num plano mais recuado, o desenro-
lar de uma acção protagonizada por outra mulher. Por vezes, surge no
cumprimento das suas funções, como a criada da
Olympia de Manet a
entregar-lhe as flores de um eventual amante. Outras vezes, aparece num
papel de cumplicidade com a sua ama, por exemplo a colaborar na deca-
pitação da cabeça de Holofernes, nas
Judites de Artemisia Gentileschi ou
de Paula Rego, ou como participante activa de um mundo feminino, que
se mantém à margem do masculino e por ele é desconhecido.
Compartilhe com seus amigos: