A A RTE S E M H I STÓ R I A
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Um dos principais e, muitas vezes, mais perversos argumentos
para justificar a desproporção persistente entre mulheres e homens
no mundo da arte contemporânea é o da “qualidade”. Como é que a
qualidade e o mérito têm servido, tantas vezes, para iludir desigual-
dades de género, no campo artístico como no literário, político ou
empresarial? Como é que uma disciplina – a história da arte – tem
lidado com a “qualidade” enquanto um dos seus conceitos fundado-
res? Como é que a maior ou menor consciência feminista de cada país
e respectiva opinião pública, comunicação social e academia afectam
as escolhas de quem escolhe? Indissociáveis destas questões são, de
facto, as diferenças nacionais. Se o desenvolvimento da história da arte
enquanto disciplina científica, em países como o Reino Unido e os
Estados Unidos da América, foi já influenciado desde há muito pela
teoria feminista, o mesmo não se passou em Portugal? Porque é que
subsistem estas diferenças entre países num mundo em que tanto se
fala da globalização e circulação do conhecimento? Como é que se
explica que o conhecimento sobre a arte se desenvolva de modos di-
versos em diferentes contextos nacionais numa altura em que, noutros
aspectos, tenha deixado de fazer sentido pensar na produção artística
em termos nacionais?
Indissociável desta questão é a da globalização dos feminismos e
da arte. Uma das transformações do feminismo teórico, tal como foi
enunciado na década de 1970 (ou mesmo na segunda metade do sécu-
lo XIX em países como o Reino Unido, onde o feminismo já teve um
grande desenvolvimento teórico), é que
deixou de ser produzido ape-
nas por uma elite de mulheres brancas, cultas, privilegiadas e ociden-
tais para multiplicar as suas vozes e os seus discursos: do feminismo
negro norte-americano, misturado com a luta contra as discriminações
raciais, ao feminismo académico indiano, indissociável dos desafios do
pós-colonialismo e das desigualdades sociais, ou aos feminismos teó-
ricos e activistas enunciados por mulheres provenientes de múltiplos
contextos nacionais e religiosos, também daqueles países mais pobres
e com mais desigualdades ao nível dos direitos humanos. Este fenóme-
no, que começou por afectar o feminismo enquanto instrumento de
reflexão sobre o passado ou o presente, também tem afectado a história
da arte, hoje muito mais atenta àquilo que se passa para lá das fronteiras
onde foram definidas as “belas-artes” europeias. Neste aspecto, este
livro entra em contradição: a minha formação, muito mais centrada
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no espaço europeu, aliada à maior tradição historiográfica para a arte
produzida por mulheres europeias, fez com que eu acabasse por re-
produzir essa ausência de uma perspectiva global. Também, neste ca-
pítulo, analisarei alguns dos desafios colocados pelo feminismo aos
museus contemporâneos. Como é que os museus do presente lidam
com a masculinidade das narrativas visuais que apresentam, muitas
vezes intrínsecas aos momentos históricos em que as suas colecções
foram formadas? Como é que o feminismo se tem cruzado com as
práticas museológicas em diferentes contextos nacionais? E como é
que a arte feminista – prática artística da década de 1970 – tem sido,
ou não, integrada nos cânones artísticos do século XX?
Em suma, se existem muitas diferenças nacionais nas formas
como as disciplinas de ciências humanas e sociais têm evoluído, uma
das características da história da arte actual, sobretudo no mundo
anglo-saxónico, é, sem dúvida, integrar a perspectiva feminista ou
de género, considerada um elemento essencial para se compreender
o processo de criação artística, o seu conteúdo e os modos como a
própria arte é classificada e estudada
12
. Segundo esta perspectiva, a
arte e os artistas não podem ser compreendidos fora do seu contexto
histórico-cultural: tão importante como analisar a componente de
género na produção de um trabalho artístico – por exemplo, como
é que o percurso e a obra de uma pintora do século XVII foram de-
terminados pelo facto de ela ser mulher – é fazê-lo em relação à for-
ma como esse trabalho foi avaliado – como é que a crítica de arte
ou a história da arte escreveram sobre ele
13
. Neste aspecto, partilha
algumas das premissas da história da arte influenciada pelo marxis-
mo. Centrada nas diferenças sociais (em vez de sexuais), esta aborda-
gem também considera que a arte (e a história da arte) é inseparável
do contexto onde foi produzida, ao mesmo tempo que desafia uma
ideia muito premente da história da arte de que o melhor dos artistas
é capaz de transcender as suas circunstâncias ou, mesmo, que a ge-
nialidade “vem sempre ao de cima”. Como já Virginia Woolf afirmou
na conferência que proferiu, em 1928, no Girton College – primeira
universidade para mulheres, criada em Cambridge, na altura em que
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