A A RTE S E M H I STÓ R I A
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os mais diversos assuntos é inseparável do
lugar e do
momento em que
esse discurso foi enunciado. O desenvolvimento de uma perspectiva
feminista, no interior das ciências sociais e humanas, a partir da dé-
cada de 1970, sobretudo nos contextos norte-americano e britânico,
mas também no francês, por exemplo, deve ser entendido como par-
te das profundas transformações político-sociais onde o pensamento
feminista passou a ocupar um lugar central. Mas, se estas mutações
também se deram em muitos outros países, não quer dizer que as suas
implicações se tenham sentido no interior do discurso da academia.
O caso português é bem exemplo disso – o pensamento feminista e
as enormes mudanças da condição feminina ao nível jurídico, social
ou político, que tiveram lugar a partir da década de 1970 em Portugal,
pouco se fizeram sentir no ensino e na escrita académicos durante esse
período e, mesmo, nas décadas seguintes.
A situação do Portugal contemporâneo poderia ser compa-
rada à do Reino Unido em meados dos anos 70, a ensaiar, de um
modo fragmentário, a introdução do feminismo nos baluartes aca-
démicos com as suas resistências instrínsecas. A palavra feminismo
continua a incomodar muitos académicos, intelectuais, jornalistas e
editores, não apenas homens mas também mulheres, enquanto as
teorias críticas que lhe deram voz persistem, maioritariamente, em
ser remetidas para o estatuto de assunto menor, quando não ignora-
das. Apesar de um enorme desenvolvimento na última década, estas
abordagens tendem a estar concentradas em núcleos de investigação
específicos, normalmente ao nível da pós-graduação (mestrados e
doutoramentos), com repercussões limitadas entre os alunos de li-
cenciatura. Ainda é possível, em Portugal, concluir muitas licencia-
turas de ciências sociais e humanas – da sociologia à história ou à
psicologia – sem nunca encontrar a palavra feminismo, nem sequer
tomar conhecimento da existência de teorias feministas sobre as áre-
as disciplinares estudadas
317
. Funcionando quase sempre como uma
espécie de disciplina independente, está longe de se integrar no in-
terior de cada discurso científico como uma das suas componentes
intrínsecas. Muitos estudantes portugueses, das mais variadas áreas
317.
E mesmo a palavra “feminismo” é problemática. Não é raro ouvir
académicos ou jornalistas, para só falar daqueles que trabalham especialmente
com
o conhecimento escrito, a dizer “femininismo” em vez de “feminismo”, num
fenómeno que só revela a falta de familiaridade que a palavra tem na nossa cultura.
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de conhecimento, só se confrontaram com uma abordagem feminis-
ta em mestrados e doutoramentos realizados fora de Portugal. Os
muitos sinais de mudanças positivas são ainda bastante fragmenta-
dos, mas, sob a forma de departamentos, programas universitários,
revistas ou colóquios e, mesmo, publicações, os estudos de mulhe-
res, feministas ou de género, estão, lentamente, a imprimir a sua mar-
ca na academia
318
. Mas mais numas áreas do que noutras. A antro-
pologia ou os estudos literários, por exemplo, talvez devido a uma
maior tendência destas disciplinas para a contemporaneidade e, em
geral, para a abertura ao exterior, têm demonstrado uma maior permea-
bilidade em relação aos vários caminhos de um feminismo teórico.
O porquê desta especificidade do caso português pode ter múl-
tiplas respostas e também tem sido objecto de reflexão por parte de
alguns investigadores, mas certamente que a situação política portu-
guesa da década de 1970 poderá ser uma das principais explicações.
A mudança de regime, a politização da sociedade civil, a redefinição
de liberdades e direitos e a consolidação da democracia, assim como
a própria reconstrução do ensino, levaram a que a teoria feminista
não tivesse ainda espaço para desafiar as formas de conhecimento. O
feminismo vivido em Portugal tentava assegurar direitos básicos de
igualdade jurídica entre mulheres e homens, inexistente até à década
de 1970, ou simplesmente aceder a palavras que até então eram prer-
rogativa masculina – como aconteceu com o livro de poemas eróticos
de Maria Teresa Horta,
Minha Senhora de Mim, publicado em 1971
319
.
Até há umas décadas, era mais fácil encontrar estas e outras ra-
zões para a impermeabilidade nacional a uma abordagem feminista,
razões estas que eram indissociáveis umas das outras: um isolamento a
vários níveis; ausência de bibliotecas que possuíssem livros publicados
318.
Em 2010, por exemplo, foram reeditadas as
Novas Cartas Portuguesas,
a famosa crítica ao patriarcado dominante em Portugal, escrita em 1972
pelas
“três Marias” (Maria
Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa),
que foi apreendida pelas autoridades políticas
por ser considerada obscena
e um atentato à moral pública. Pela iniciativa de Ana Luísa Amaral, talvez esta
reedição venha sensibilizar os professores dos vários níveis de ensino para a
centralidade deste texto do ponto de vista literário e para a compreensão de um
determinado momento histórico português e passe
a fazer parte dos programas
de ensino secundário, assim como de muitas licenciaturas de ciências sociais e
humanas: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa,
Novas
Cartas Portuguesas
(Lisboa: Futura, 1974); 1.ª ed. (Lisboa: Estúdios Cor, 1972).
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