A A RTE S E M H I STÓ R I A
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com uma política de mérito e de qualidade – a excelente qualidade dos
seus jornalistas assim o demonstra. O
The Guardian (ou o
Observer, ao
domingo) apresenta uma grande quantidade de mulheres com coluna
fixa a falarem de assuntos de domínio comum (e não apenas de assun-
tos que se consideram destinados a mulheres), tal como conta entre
os seus colaboradores com homens e mulheres de diversas origens ét-
nicas, representativos, aliás, de um Reino Unido onde ser “britânico”
deixou há muito de significar ser “branco”. Claro que o
The Guardian
ocupa as bancas de jornal com o
Sun ou o
Daily Mail, onde os discur-
sos visuais e as políticas e ideologias jornalísticas são outras, mas não
é com eles que se deveria comparar um jornal da qualidade do
Público
ou do
Expresso.
Um outro exemplo poderia ser o do cânone dos jovens escritores
que tem vindo a ser instituído recentemente nos jornais de referência
portugueses, do
JL ao
Público ou ao
Expresso, ou em conferências e
festivais literários
313
. Em artigos muitas vezes com direito a capa, o
tema da “nova geração de escritores” tem ocupado um espaço substan-
cial das secções culturais da imprensa. Neles, pretende-se identificar a
nova geração de escritores, aqueles que têm entre os 30 e os 45 anos
e que, ao estarem no seu terceiro ou quarto livros, já deram provas de
que a escrita é e continuará a ser a sua forma de vida. Consideramos
que ainda mais surpreendente do que a masculinidade deste cânone
assim instituído é não haver quem o questione. Porque é que as mu-
lheres estão quase sempre ausentes quando se fala nesta geração? Em
que momento do processo de publicação literária é que surge esta dis-
paridade – no crivo editorial de quem decide o que é que se publica?
No crivo da crítica que selecciona quem merece e quem não merece
ser anunciado como promessa do mundo literário? No momento das
reflexões mais gerais sobre a “nova geração” como aquelas que têm
sido feitas ultimamente? Ou na conjugação de múltiplos factores que,
consciente ou inconscientemente, continuam a associar o masculino
a uma escrita “literária”, séria, credível, de qualidade e destinada ao
leitor – homem e mulher – que lê literatura, e o feminino a uma escrita
destinada a um público feminizado e menos erudito?
313.
Um exemplo entre vários: João Bonifácio, “O país
dos poetas perdeu
o medo de ser um país de narradores? David Machado e a sua geração”,
Ípsilon,
suplemento
cultural do Público (29 de Abril de 2011), pp. 6-10.
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A masculinidade do cânone de jovens escritores e, sobre-
tudo, a ausência de interrogação acerca dos porquês desta mas-
culinidade são factores que aproximam o mundo elitista, culto e
intelectual daquelas esferas consideradas distantes da arte ou da litera-
tura. É também mais um dos muitos exemplos de como aqueles que
política e ideologicamente se identificam com posições de contra-
-poder, de consciência cívica e social e de tolerância (ou de “esquerda”,
como é muitas vezes referido no senso comum) no que se refere à aceita-
ção das mulheres enquanto agentes criativos e com voz com quem parti-
lhar o espaço cultural, acabam por reproduzir gestos e posições muito se-
melhantes aos tidos como “reaccionários”. Obviamente, não são apenas
os homens que o fazem. Como também tem sido estudado pelas ciências
sociais, as mulheres não apenas aceitam, muitas vezes, as normas patriar-
cais vigentes, como contribuem, tanto activa como passivamente, para a
sua legitimação e reprodução. Estes exemplos só são relevantes porque
demonstram que o mundo da arte não é distinto de outros mundos.
Não está aqui em causa a competência
daqueles que estão, mas sim
a ausência
daquelas que não estão. O que está em causa é o processo –
múltiplo, mais inconsciente do que consciente – que leva a que a voz
dominante da opinião pública, da palavra e da criatividade seja mascu-
lina, um fenómeno que, tantas vezes, se atribui a um passado remoto
ou ao presente de países que consideramos muito longe do nosso em
desenvolvimento e democracia. Pensamos que só quando existirem
muitos homens e mulheres de várias gerações, incomodados com esta
ausência de vozes e caras femininas nos espaços mais prestigiados e in-
fluentes da opinião pública; só quando existir um número substancial
de pessoas que considerem que estes são sinais de uma sociedade com
um baixo défice de cultura democrática; só quando a crítica ao siste-
ma invisível de quotas masculinas vier de dentro – também daqueles
que têm acesso à palavra, e nem sequer são mulheres – é que poderá
aumentar a consciência em relação às fortes mensagens políticas e cul-
turais que estas escolhas significam. Perante o cenário actual, as novas
gerações – as dos nossos filhos que são, hoje, crianças e adolescentes
– acharão “natural” que sejam os homens a dominar o espaço público
naquelas questões que são consideradas mais relevantes, da economia
à política, à religião ou à cultura. Tal como acharão que é natural que as
mulheres dominem a publicidade e o espaço visual daquilo que é “light”
ou “feminino”. Só quando se tiver presente a força da “naturalização”
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