A A RTE S E M H I STÓ R I A
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Por outras palavras, a especificidade do caso português surge-nos
apa-
rentemente como muito distinta, para não dizer diametralmente opos-
ta, daquilo que acontece noutros lugares. Enquanto, em quase todos
os países, a “existência” de mulheres artistas, mesmo para um passado
recente, se deve frequentemente a um processo de “escavação arque-
ológica”, no caso português estas escavações não seriam necessárias.
Prova disso seria precisamente a de alguns dos mais reconhecidos ar-
tistas portugueses serem mulheres: no século XVII, Josefa de Óbidos,
tal como, nos séculos
XX e XXI, Vieira da Silva e Paula Rego.
Por outro lado, exceptuando os escritos mais recentes sobre Pau-
la Rego, o facto de serem todas mulheres tem sido uma não-questão
nas abordagens historiográficas nacionais dos seus percursos e da sua
obra
300
. Uma resposta imediata e inocente a esta constatação seria a
de afirmar que a sua identidade de mulheres não afecta ou influencia
a sua identidade de artistas e, até, que a ausência de uma perspectiva
historiográfica feminista na crítica da arte e na história da arte portu-
guesas apenas confirmaria o facto de esta não ser necessária nem perti-
nente. Outra reacção, ainda, relacionaria este tipo de abordagem com
um olhar demasiado específico que estaria agora
na moda e, portan-
to, devia ser ignorado por uma abordagem profunda, sólida e alheia a
essas digressões marginais à tradição historiográfica. Assim, Josefa de
Óbidos, Vieira da Silva ou Paula Rego tendem a não ser consideradas
“mulheres artistas” (entendendo isso como uma classificação derroga-
tória), mas sim artistas, sujeitas a critérios de qualidade e mérito que
se consideram independentes do género.
Em contraste com a ausência de uma perspectiva de género, as te-
orias e reflexões sobre o centro e a periferia têm estado presentes na his-
toriografia da arte portuguesa para vários períodos, sendo usadas como
um dos instrumentos de análise para se compreender a especificidade
300.
Para alguns exemplos de uma abordagem feminista à sua obra ou
uma abordagem que tenha em conta o facto
de a artista ser uma mulher, ver:
Elspeth Barker, “
The Dance (1988) Paula Rego”, Judith Collins e Elsbeth Lindner,
eds.,
Writing on the Wall. Women writers on women artists (Londres: Weidenfeld
& Nicolson, 1993), pp. 7-14 [inclui também uma capítulo sobre Vieira da Silva:
Jane Rogers, “
The Corridor (1950) Maria Helena Vieira da Silva”, pp. 121-125];
Maria
Manuel Lisboa,
Paula Rego’s Map of Memory. National and sexual politics
(Hampshire: Ashgate, 2003); Marina Warner,
Paula Rego. Jane Eyre (Londres; Lisboa:
Enitharmon; Cavalo
de Ferro, 2003); Ruth Rosengarten,
Contrariar, Esmagar, Amar.
A família e o Estado Novo na obra de Paula Rego
(Lisboa: Assírio & Alvim, 2009); Ana
Gabriela Macedo,
Paula Rego e o Poder da Visão (Lisboa: Cotovia, 2010).
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do caso português nesta como noutras áreas das ciências sociais e huma-
nas. Vimos já como Luís de Moura Sobral e Vítor Serrão recorreram ao
binómio de centro-periferia para analisar a obra de Josefa de Óbidos, tal
como Alexandre Melo fez para analisar a produção artística de Vieira da
Silva e Paula Rego
301
. Enquanto, em relação à pintora de Seiscentos, este
lugar periférico teria condicionado o gosto e a cultura artística do seu
público afastando-a dos “centros de produção de cultura erudita”, nos
casos das duas pintoras portuguesas nascidas no século XX teria sido
precisamente o seu afastamento da periferia (Portugal) em direcção aos
centros (Paris e Londres, respectivamente) a contribuir para a compre-
ensão dos seus percursos artísticos
302
.
Quer Vieira da Silva, quer Paula Rego são duas artistas que
saíram de Portugal e que o fizeram de forma definitiva, num claro
contraste com tantos outros artistas portugueses que passaram pelo
estrangeiro por períodos mais ou menos curtos. Foi este o caso de
Aurélia de Sousa ou Sarah Affonso que, tendo estudado pintura em
Paris durante um ou dois anos, cedo regressaram a Portugal, para
não voltarem a sair. No texto do catálogo de uma exposição con-
junta de Vieira da Silva e Paula Rego, por exemplo, organizada pela
Galeria Nasoni em 1992, Alexandre Melo aplica a teoria de centro
e periferia aos casos das duas artistas. Pensamos que faria sentido
acrescentar uma perspectiva de género à sua interessante abordagem
que, aqui como em muitos dos seus outros trabalhos, dá relevância a
uma análise do contexto de produção da arte. No breve texto inicial
assinado pela “Direcção da Galeria Nasoni” em que se fala na projec-
ção internacional das artistas num período em que Portugal ainda
não pertencia à comunidade europeia, é reconhecido o facto de as
duas artistas escolhidas serem mulheres, mas apenas para se afirmar
que se trata de uma “mera
curiosidade e
coincidência [o itálico é meu]
a projecção ter sido atingida por duas Mulheres de nome e cultura
portugueses por nascimento e formação”
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