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espaço para uma mulher espectadora perante as representações do nu
masculino, ou será que ela terá sempre que assumir o papel de
voyeur,
de intrusa numa série de códigos visuais e sexuais que não lhe são des-
tinados? No caso de Mapplethorpe, é óbvio que assim seja: todo o seu
trabalho é uma ode à sexualidade vivida no masculino e à identidade
do próprio artista. Mas, no caso do nu masculino do jovem
David –
no original exposto na Academia de Florença, ou na sua cópia, visí-
vel aos milhares de turistas que todos os dias passam pela Piazza da
Signoria da mesma cidade, ou na sua reprodução maciça em postais e
souvenirs –, esta apropriação enquanto símbolo da cultura “gay” não é
assim tão óbvia. É mais fácil colocar o
David num cânone de escultura,
grega, romana, ou renascentista, onde o nu responde a determinadas
expectativas estéticas esvaziadas de erotismo, reconhecíveis ao olhar
da maior parte dos observadores e onde os representados estão dis-
tantes no tempo, do que fazê-lo com muitos dos nus masculinos de
Mapplethorpe.
Desde as primeiras fotografias que ele realizou na década de
1970, onde o homoerotismo é representado de uma forma mais es-
pontânea e mais associada à fotografia instantânea, até aos últimos
trabalhos antes da sua morte prematura, existe um caminho em di-
recção à teatralização do objecto. Recorrendo a estratégias formais de
composição e a encenações onde sobressai a artificialidade do estúdio,
Mapplethorpe atinge um classicismo que contrasta com o conteúdo
erótico da imagem. Nesta imposição de uma forma clássica, repete-se
aquilo que a pintura europeia fez durante séculos – neutralizar aquilo
que de sexual ou erótico o corpo nu poderia ter, para o conter nas fron-
teiras estáticas e estéticas do belo. A ambiguidade feminino-masculi-
no também está presente em algumas das suas fotografias, que jogam
com a fronteira do que se associa a um e a outro sexo, como acontece
com dois auto-retratos de Mapplethorpe: num, representando o mas-
culino, e, noutro, vestido e maquilhado como uma mulher. Mas onde
a androgeneidade se torna mais óbvia é nos casos de Lisa Lyon e Patti
Smith. Com um corpo forte e musculado, a campeã num concurso de
“bodybuilding” habita a fronteira entre o feminino e o masculino. Pat-
ti Smith, companheira, amiga e amante de Mapplethorpe (identida-
des diferentes em diferentes momentos das suas vidas), possui outro
tipo de androgeneidade, precisamente aquela que parece dissimular as
características do seu próprio sexo, sem se apropriar das do seu oposto.
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