A A RTE S E M H I STÓ R I A
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Por sua vez, o texto de Octave Uzanne, publicado em 1894 e inse-
rido no seu livro sobre as mulheres parisienses, constitui-se num outro
exemplo de um tipo de olhar masculino que visava classificar e iden-
tificar os diferentes tipos de mulheres através da escrita
222
. Numa tra-
dição de literatura popular e de artigos jornalísticos que descreviam a
contemporaneidade através da perspectiva divagadora de um
flâneur,
Uzanne reconhecia o fenómeno, cada vez mais visível, das mulheres
artistas. As suas palavras ilustravam bem um fenómeno que já referi-
mos a propósito de outros períodos históricos: quando as mulheres
artistas com percursos artísticos paralelos aos dos seus congéneres
masculinos eram uma excepção e, portanto, percebidas como uma mi-
noria e, quando as mulheres artistas amadoras permaneciam num es-
paço privado sem pretensões a outras esferas artísticas, a sua existên-
cia não constituía uma ameaça. Mas, quando a presença das mulheres
se começou a fazer sentir em diversas profissões e em diversos espaços
públicos, algo que aconteceu ao longo do século XIX, multiplicaram-
-se as vozes contra a sua emancipação. Uma das formas de lidar com
um fenómeno ameaçador consiste em sobrevalorizar a sua força e ca-
ricaturar o seu impacto, tal como fez Uzanne nesta passagem:
Estamos no início de uma nova era, uma era que dará às mulheres a
possibilidade de desenvolverem ao máximo as suas faculdades intelectuais.
Em nenhuma outra época foram os seus talentos para a pintura, escultura
e, sobretudo, literatura tão consideráveis como no presente. As mulheres
pintoras e músicas multiplicaram-se durante os últimos vinte anos, entre os
círculos burgueses, mas também no demi-monde
.
Na pintura, especialmente, elas não se deparam com a oposição violenta
que tiveram que aguentar noutros tempos. Até se poderia dizer que
elas são demasiado favorecidas, demasiado encorajadas pelo orgulho e
pela ambição das suas famílias, e que correm o risco de se transformar
numa verdadeira praga, uma confusão a temer, e um terrível fluir de
mediocridade. Um verdadeiro exército de mulheres pintoras invadiu os
222.
Octave Uzanne, “Women Artists and Bluestockings”,
La Femme à
Paris: Notes successives sur les parisiennes de ces temps dans leurs divers milieux,
états et conditions
(Paris: Ancienne Maison Quartin, Libraries-Imprimeries, 1894);
edição inglesa:
The Modern Parisienne (Londres: Heinemann, 1912), pp. 125-133.
Reproduzido na antologia
Art in Theory 1815-1900. An anthology of changing ideas,
eds. Charles Harrison, Paul Wood e Jason Gaiger (Oxford: Blackwell
Publishers,
1998), pp. 777-781.
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estúdios e os Salons, e elas até abriram uma exposição de mulheres pintoras
e escultoras, onde os seus trabalhos monopolizam galerias inteiras. A
profissão da mulher pintora está agora consagrada, registada e bem vista.
Quando Uzanne parece estar a congratular-se com a “nova era”
onde as mulheres passaram a ter acesso às profissões criativas, as suas
palavras revertem para uma linguagem quase bélica onde as mulheres
“invadem” os espaços que anteriormente lhes estavam vedados e, até,
os “monopolizam”. É necessário ter em conta que a linguagem com
que ele se refere às mulheres artistas era muito comum em relação às
mulheres feministas, apontadas como uma ameaça assustadora.
Uma das formas de Uzanne caracterizar as “mulheres artistas”,
em número
cada vez maior, é precisamente sublinhando as diferenças
irreconciliáveis com os verdadeiros artistas, ou seja, os homens. Para
justificar o seu raciocínio, o autor apela às palavras do filósofo político
Proudhon, do historiador Jules Michelet ou do antropólogo italiano
Cesare Lombroso que, no seu estudo
L’Uomo di Genio…, apresentara
as razões científicas da incapacidade feminina para a genialidade
223
.
O génio tinha género e ele era masculino. Partindo desta premissa,
as raras excepções femininas que, de alguma forma, o demonstraram
fizeram-no porque a sua natureza era masculina. Assim, a masculiniza-
ção daquelas mulheres cuja
qualidade artística era considerada eviden-
te foi um dos caminhos escolhidos para reafirmar a impossibilidade da
genialidade artística feminina. Aquelas mulheres que o demonstravam
simplesmente não eram femininas, não eram “mulheres”.
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