A A RTE S E M H I STÓ R I A
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Parece-nos pertinente colocar Vieira da Silva e Arpad Szenes,
Paula Rego e Victor Willing ao lado destes outros casais de artistas,
sem obviamente descurar a individualidade e a complexidade de cada
uma destas relações. Mesmo Josefa de Óbidos e Baltazar Gomes Fi-
gueira poderiam ser aqui incluídos porque, embora sejam filha e pai,
e não um casal, em termos de historiografia da arte os problemas que
se colocam – influência e influenciado, tendência para hierarquizar –
são equivalentes. Num processo inverso à norma, quem necessitaria
de ser “escavado”, no caso português, são os pais e os maridos destas
“conhecidas” artistas, também eles artistas, mas remetidos para aquela
sombra que tem sido apanágio historiográfico das mulheres. Indepen-
dentemente do seu valor artístico, argumento tantas vezes invocado
pela história da arte para determinar quem se encontra entre os seus
anais, é inegável que estes nomes masculinos são menos “conhecidos”
do que os das mulheres com quem partilharam a sua vida afectiva e
criativa. Assistimos recentemente a um exemplo de escavação do ele-
mento “esquecido” no masculino: no fim de 2004, Vítor Serrão orga-
nizou uma exposição e publicou um catálogo sobre Baltazar Gomes
Figueira, “o pai de” Josefa de Óbidos, em que propõe uma reavaliação
das obras, quer do pai, quer da filha
199
. O inevitável recurso à compa-
ração que preside à avaliação de um casal de artistas ou, neste caso,
de dois artistas unidos por laços familiares muito próximos estabelece
invariavelmente uma hierarquia entre influência e influenciado, entre
“melhor artista” e “pior artista”. Num curioso processo, paralelo mas
inverso àquele que tem sido realizado por uma abordagem feminista,
o historiador da arte encontra na obra do pai
aquilo que a filha depois
desenvolveu de forma menos conseguida. O lugar atribuído a Josefa
de Óbidos na historiografia da arte portuguesa teria, assim, determi-
nado a ausência de interesse pelo trabalho do seu pai, situação que esta
exposição teria vindo resolver.
Outro aspecto deste fenómeno dos casais de artistas ou das du-
plas de artistas pai-filha é o da persistência de rumores em relação à
199.
Baltazar Gomes Figueira, 1604-1674: Pintor de Óbidos que nos paizes foi
celebrado
(Óbidos: Câmara Municipal de Óbidos, 2005), Catálogo de Exposição;
também Victor Willing, por exemplo, marido de Paula Rego, teve
recentemente
a primeira retrospectiva em Portugal, organizada
por Helmut Wohl na Casa das
Histórias, em Cascais:
Victor Willing. Uma retrospectiva (Cascais: Fundação
Paula
Rego, Casa das Histórias; Câmara Municipal de Cascais; Turismo
de Portugal,
2010), Catálogo de Exposição.
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autoria da obra assinada pelo elemento feminino, como já vimos com
o caso de Elizabeth Vigée-Lebrun. Entre os muitos outros casos que
poderíamos citar, está o de Elisabetta Sirani, de quem se dizia que era
ajudada pelo pai, também pintor. Na oração fúnebre que lhe faz Gio-
vanni Luigi Picinardi,
Il pennello lagrimato, em 1665, refere os indiví-
duos maliciosos que espalhavam o rumor de que o pai é que pintaria
os seus quadros, pedindo a assinatura da filha de forma a torná-los
mais “raros e admirados como sendo obra feminina”
200
. Através de
várias provas, nomeadamente oculares, Picinardi desmente veemente-
mente estas acusações. Um outro exemplo semelhante é o de Margari-
da Relvas, fotógrafa e filha do fotógrafo português oitocentista Carlos
Relvas. A ideia persistente é a de que era o pai que fazia as fotografias
e que apenas poria o nome dela para poder participar com mais ima-
gens nas exposições universais e, assim, aumentar a probabilidade de
obter um maior número de prémios. Independentemente do facto de
que, por vezes, estas acusações até possam ser verídicas, elas recaem
muito mais sobre as mulheres artistas do que sobre os homens. E só
no caso das primeiras é que o género é invocado. Ou seja, mesmo que
um homem seja acusado de não ser o autor de uma obra de arte ou
de literatura, isto não é associado aos seus limites enquanto “homem”.
A persistência desta acusação em relação ao trabalho, bem fei-
to, de mulheres fez que, quando a obra produzida por mulheres fosse
considerada de “má qualidade”, já ninguém questionasse o facto de te-
rem sido mulheres a realizá-la. Antes de emitir este género de juízos
ainda comuns
na historiografia da arte, é necessário fazer um trabalho
de investigação que não seja influenciado por esse conceito
a priori.
Os
bias de género masculino ou feminino influenciam, muitas vezes, o
olhar de quem escreve, avalia, escolhe e historiciza. Enquanto nas aná-
lises históricas, nas críticas literárias ou artísticas ou, sobretudo, nos
comentários do senso comum em que se referiam mulheres artistas
eram frequentes as suposições de que por detrás do seu trabalho esta-
riam uma mão ou uma cabeça masculinas, não se encontram exemplos
equivalentes para a avaliação da criação artística masculina. A hipótese
de que uma mulher pudesse ter um papel determinante no processo
de criação artística de um homem, pelo contrário, só recentemente
começou a ser aceite, e reconhecida, pela análise literária ou historio-
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