Em 13 de maio de 1924, o jornal da imprensa negra O Clarim d’Alvorada,
de São Paulo, publicou um longo editorial para comemorar a supressão do
cativeiro no Brasil. Intitulado “A redempção de nossa raça”, o editorial come-
çava informando: “Comemora-se hoje em todos os recantos do nosso tão caro
* Professor Adjunto. Universidade Federal de Sergipe (UFS). Centro de Educação e Ciências
Humanas. Cidade Universitária Professor José Aloísio de Campos. Jardim Rosa Else. 49100-000
São Cristóvão – SE – Brasil. pjdomingues@yahoo.com.br
“A redempção de nossa raça”:
as comemorações da abolição
da escravatura no Brasil
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“The Redemption of Our Race”: the
commemorations of the abolition of slavery
Petrônio José Domingues*
Resumo
São Paulo, primeiras décadas do século
XX. Era comum, nesse período, estratos
da população negra saírem às ruas todo
ano para comemorar o 13 de Maio – da-
ta da abolição da escravatura no Brasil
–, por meio de romarias, missas, confe-
rências cívicas, discursos solenes, festi-
vais artístico-culturais, bailes, música,
dança e teatro, embalados, na maior
parte das vezes, por um clima de emo-
ção e alegria. Apoiando-se em registros
diversos, especialmente jornalísticos, o
artigo tem a finalidade de descrever e
examinar essas comemorações, procu-
rando demonstrar os seus múltiplos
sentidos e diferentes significados.
Palavras-chave: negros; diáspora africa-
na; abolição; escravidão e liberdade; co-
memorações.
Abstract
São Paulo, the first decades of the twen-
tieth century. It was common in this pe-
riod for part of the black population to
take to the streets every year to celebrate
13 May – date of the abolition of slavery
in Brazil –, involving pilgrimages, mas-
ses, civic conferences, solemn discour-
ses, artistic and cultural festivals, dan-
ces, music, dance, theater and partying,
most often in a climate of emotion and
joy. Drawing on various registers, espe-
cially journalistic, the article aims to
describe and examine these commemo-
rations, seeking to demonstrate their
multiple meanings and different signifi-
cances.
Keywords: blacks; African Diaspora;
abolition; slavery and liberty; comme-
morations.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, nº 62, p. 19-48 - 2011
Petrônio José Domingues
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Revista Brasileira de História, vol. 31, nº 62
Brasil mais um aniversário da extinção da escravidão; portanto, são passados
36 anos que neste grande dia a nossa querida Pátria cantou o belo hino da li-
berdade perante as nações civilizadas, tornando-se mais feliz” e entrando “no
rol das grandes potências”. Era necessário que se extinguisse para sempre o
cativeiro, afinal, “de que vale o trabalho forçado?”. Como se poderia trabalhar
com esmero, recebendo em pagamento castigos, “se o trabalho para ser a base
da produção necessita da espontaneidade e aplicação?”. Para que o trabalho
fosse empreendido com todas as disposições fundamentais, seu executor pre-
cisaria ser bem pago. “Os nossos avós”, advertia o autor do editorial, “recebiam
em pagamento dos seus árduos trabalhos açoites, flagelos e outros castigos
terríveis”. Cansados muitas vezes de tanto sofrer, alguns se suicidaram para
não mais padecer, porém muitos teriam suportado esses “tormentos resigna-
dos”, até que apareceram uns “homens de senso, de caridade”, que sabiam o
quanto sofriam aqueles “pobres infelizes que vieram do Velho Continente,
enganados pelos tiranos”; vieram devastar florestas, soerguer inúmeras fazen-
das, aqui formaram uma nova geração e “a eles e a todos os seus descendentes
o Brasil deve os seus alicerces”. Também entre os “homens de senso” salienta-
ram uma “Senhora Nobre” a quem devemos dar o título de mãe de todos os
cativos: a princesa Isabel, “a redentora”, que conhecera também as inúmeras
injustiças. “Imploramos a Jesus pela sua alma bendita e para todos que se es-
forçaram na campanha da nossa redenção”.
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Em 1926, o Clube 13 de Maio dos Homens de Cor resolveu organizar
várias atividades para comemorar o “grande dia da emancipação da nossa
raça”: às 9 horas, seus associados e convidados assistiriam missa na igreja de
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em sufrágio dos escravos e dos
abolicionistas; logo após, iriam ao cemitério, para depositar flores nos mauso-
léus de Luís Gama e Antônio Bento, “prestando-lhes homenagens de gratidão”.
À noite, em sua sede, situada à rua Conceição, 5, haveria “sessão solene, dis-
curso sobre a data pelo seu orador oficial, em seguida um pomposo baile até
ao romper do dia”.
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Como é possível notar, estratos da população negra de São
Paulo, nas primeiras décadas do século XX, dedicavam significativo valor ao
Treze de Maio e costumavam ocupar o espaço público para comemorar a da-
ta. Mas como se davam esses rituais comemorativos, em termos de configura-
ções, ideais, discursos, imagens e representações? Os jornais e as associações
dos ‘homens de cor’ eram as únicas arenas produtoras da efeméride? E por que
essas arenas veiculavam narrativas laudatórias dos abolicionistas e da Prince-
sa Isabel? São essas as principais questões que nortearão o artigo. A proposta,
aqui, é desvelar os múltiplos sentidos e diferentes significados que os agentes
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“A redempção de nossa raça”: as comemorações da abolição da escravatura no Brasil
dessa história atribuíam às suas ações, a partir de “seus próprios rituais, suas
próprias satisfações e visão do mundo”.
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Desde a década de 1970, o movimento negro organizado passou a mover
uma campanha implacável contra o Treze de Maio. Suas lideranças argumen-
tavam que a Abolição foi uma ‘mentira’ e uma ‘farsa’ – duas palavras usadas
repetidas vezes –, pois não garantiu a inclusão do negro na sociedade brasilei-
ra, sobretudo no mercado de trabalho. Em vez de ‘redentora’, a princesa Isabel
devia ser vista como uma ‘impostora’. Simultaneamente, esses argumentos
eram reforçados pelos estudos de alguns intelectuais brasileiros. Para Clóvis
Moura, nenhum sentido comemorativo se justifica para o Treze de Maio. Aliás,
se fizermos um balanço objetivo, ponderava o sociólogo piauiense, concluire-
mos que essa é uma data “para ser comemorada pelas classes dominantes e não
pelos segmentos negros das favelas, cortiços, alagados, invasões”. O negro
“marginalizado” nada tem “a ver com esse dia que marcou o início de um
processo odioso de segregação disfarçada, colocando-o compulsoriamente nos
últimos patamares da sociedade brasileira”.
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Já pela lente de Florestan Fernan-
des, o “13 de Maio delimita historicamente a eclosão da única revolução social
que se realizou no Brasil”, todavia os negros não só foram ‘espectadores pas-
sivos’ dessa revolução, como ainda dela foram ‘banidos’. Nas décadas de 1930
e 1940 o ‘elemento negro’ teria se conscientizado de que a Abolição não pas-
sara de uma ‘falácia social’, de modo que mais tarde, afirmava o sociólogo
paulista, “o episódio se mostra como uma efeméride das classes privilegiadas
da raça dominante. É uma data histórica dos senhores, dos manda-chuvas
brancos, de interesse indireto para o negro”.
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De tantos ataques, a data de
aniversário da Abolição cambaleou, se não foi proscrita do calendário. Em seu
lugar, elegeu-se o 20 de novembro – presumível data da morte de Zumbi, líder
do quilombo dos Palmares (século XVII) – como dia nacional de protesto e
consciência negra.
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Será que essa leitura da história, feita pelos movimentos
sociais contemporâneos, faz jus à complexidade dos fatos? Ou seja, será que o
13 de Maio foi um grande engodo, e os milhares de negros que comemoraram
a data, durante décadas no início do século XX, estavam todos iludidos, para
não dizer alienados?
Os rituais costumeiros
A assinatura da chamada Lei Áurea ocorreu em 13 de maio de 1888. Era
um domingo, de tarde ensolarada. O Rio de Janeiro, capital do Brasil, foi to-
mado por um ambiente de exultação. Os populares – ex-escravos, forros, livres,
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africanos, crioulos, negros e brancos – saíram às ruas e comemoraram numa
explosão de alegria nunca vista na história da nação. Apesar de sua timidez
peculiar, Machado de Assis não se conteve diante daquele acontecimento ex-
traordinário e fez questão de lavrar em crônica seus sentimentos impetuosos:
“Todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos cara-
mujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta ... Verdadeiramen-
te, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto”.
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Coelho Neto,
outro escritor que testemunhou o 13 de maio, traçou em romance autobiográ-
fico um painel candente das comemorações. Nas adjacências do Senado, o
povo ondulava ‘ovante’ e mais de ‘vinte mil bocas’, em uníssono, aclamavam;
iam chapéus ao ar, lenços tremulavam e, aos arrancos impulsivos, foguetes
rasgavam os ares ‘espoucando na altura’. As horas passaram em agito aluci-
nante. Nas janelas de algumas casas, as bandeiras balouçavam-se. “Bandos
percorriam as ruas, cantando. Saíram serenatas e grupos de negros com os seus
maracás e os seus reco-recos e, a luz de archotes, começaram os carpinteiros a
martelar construindo coretos ou fincando postes para a ornamentação”.
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As pessoas desfilavam, aplaudiam, gesticulavam, bradavam palavras es-
fuziantes, levantavam vivas aos heróis do novo tempo, recitavam poesias, en-
toavam músicas variadas, dançavam, bebiam, em uma só palavra, se como-
viam. O apoio popular foi total, alegre e dramático. As festividades entraram
pela noite adentro e, mesmo debaixo de chuva, se estenderam por oito dias
seguidos. Até o dia 20 de maio, o Rio de Janeiro parecia ‘de cabeça para baixo’,
na feliz expressão de Eduardo Silva. Paralisou o “porto, os trens de carga, as
repartições públicas, o serviço de correios, os bancos, as escolas públicas e
particulares, tudo parou para ver e participar da festa, até a fadiga mais com-
pleta”.
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Nas cidades do interior, a receptividade ao decreto de emancipação
foi surpreendente. ‘Liberdade’ era o termo que circulava entre os escravos de
uma fazenda para outra; um filho de um fazendeiro, da cidade de Vassouras,
teria se precipitado pelas fazendas gritando: “De agora em diante somos iguais,
somos um só”. Durante três dias e três noites podia-se ouvir o eco dos tambo-
res enquanto libertos iam à desforra com o caxambu. Esses eram realizados
próximo das vendas e tabernas, onde se podia comprar roupas que simboliza-
vam a mudança de status: chapéus, ternos, sapatos e guarda-chuvas eram an-
siosamente procurados. Segundo Stanley Stein, jongueiros pautaram o evento
de 13 de maio em suas composições, referindo-se à atitude vacilante do Impe-
rador (‘pedra’) em relação à abolição e elogiando o ato de sua filha (‘rainha’):
“A redempção de nossa raça”: as comemorações da abolição da escravatura no Brasil
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