PIRES, S. M. F. Amor romântico na literatura infantil: uma questão de gênero
Educar, Curitiba, n. 35, p. 81-94, 2009. Editora UFPR
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para garantir aos sujeitos modos de conduta socialmente adequados, é
necessário potencializar o discurso hegemônico de modo a forçar uma
identidade definitiva e, de alguma forma, tentar eliminar as “marcas” da
diferença. Por isso, falar de identidade implica sempre falar de diferença.
Toda e qualquer identidade é sempre construída pelo olhar minucioso
sobre o outro, é constituída pelo que o outro não é. Assim, a identidade
não implica somente positividade, mas está repleta de negatividade, pois
é sempre a negação de marcas culturais que estão presentes na ausência.
Nessa obra, rompendo com o modo de conduta considerado satisfatório
ao feminino, o casamento deixa de ser uma “solução natural”. Uma visão assu-
midamente feminista, em que a mulher deixa de ser um “prêmio” destinado a
outrem e passa a fazer escolhas e determinar sua vida amorosa.
A Princesa Sabichona tematiza a opressão da princesa ante a família que
não lhe permite o direito de ser solteira. Percebe-se a desavença constante da
personagem com sua mãe em prol da efetivação de seu maior desejo. Louro
(1999, p. 13, grifo da autora) chama a atenção para que “a admissão de uma
nova identidade sexual ou de uma nova identidade de gênero é considerada uma
alteração essencial, uma alteração que atinge a ‘essência’ do sujeito”.
Outro aspecto para análise dessa obra está na significação dos nomes
escolhidos para os personagens masculinos: príncipes Adubo, Ousado, Roque,
Tremelique, Tontura, Quebratudo, Mocotó, Rastejante, Mergulhão, Fanfarrão.
Todos os dez receberam tarefas a serem cumpridas de acordo com seus nomes,
como por exemplo, o Príncipe Mergulhão deveria retirar o anel mágico da prince-
sa do tanque cheio de piranhas, o Príncipe Tremelique deveria andar com a prin-
cesa de moto pelo campo,
o Príncipe Tontura deveria
resgatá-la do alto da torre...
Enfim, a todos cabiam
tarefas, determinadas pela
protagonista, inexequíveis
de realização com o obje-
tivo único de não precisar
unir-se ao pretendente.
Chamo a atenção para o
nome Fanfarrão. De todos
eles, esse é que dá a ideia
de farra, festa, diversão
e, ao ser comparado com
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os demais, é o único príncipe que oferece flores à princesa cortejando-a, está
bem penteado, não demonstra medo, confirmando as características masculinas
presentes nos livros literários em geral.
Louro (2003, p. 44, grifo da autora) faz referência à posição central de
sujeito dizendo que
ao conceito de centro vinculam-se, frequentemente, noções de
universalidade, de unidade e de estabilidade. Os sujeitos e as práticas
culturais que não ocupam este lugar recebem as marcas da particularidade,
da diversidade e da instabilidade. Portanto, toda essa “conversa” pós-
moderna de provisoriedade, precariedade, transitoriedade, etc. só pode
se ajustar às mulheres, aos negros e negras, aos sujeitos homossexuais
ou bissexuais. A identidade masculina, branca, heterossexual deve
ser, supostamente, uma identidade sólida, permanente, uma referência
confiável.
Conforme a contribuição da autora, se pode entender que os príncipes que
“fugiam” de alguma forma da representação de masculinidade “central” não
obtiveram sucesso em suas empreitadas, sendo reservado êxito somente àquele
que atendia todos os “requisitos”.
Na maior parte do texto, a narradora reforça que a princesa gosta de viver
sossegada e fazer o que bem entende. Pode-se concluir com isso, que quem casa
não consegue viver sossegado nem tampouco fazer o que bem entende. Dessa
forma, uma vida prazerosa e “mais livre” seria reservada aos/às solteiros/as, pois
casamento remete a compromisso, a regras, à falta de liberdade. Como Bauman
(2004, p. 70) corrobora ao afirmar que o casamento é, “pode-se dizer, a aceitação
da causalidade que os encontros casuais se recusam a aceitar (ou pelo menos
uma declaração da intenção de aceitá-la – enquanto a união durar)”.
Essa temática da mocinha não querer se casar, retratando o casamento como
algo desinteressante para algumas pessoas e de elas serem felizes solteiras, é algo
novo nas obras infantis, mas se encaixa nas paródias de Contos de Fadas, que
emergiram tanto na literatura infantil brasileira quanto em outras literaturas, em
que situações e personagens tradicionais são subvertidas e contestadas. A forma
como a autora desenvolve a temática do enredo merece destaque no sentido de
que usa do recurso do humor para versar sobre aspectos ainda não tão recorrentes
em nossa literatura infanto-juvenil. Bergmann (2007), sobre isso, diz
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Para referir-se ao humor e ao cômico na Literatura Infantil, alguns autores
de livros infantis brincam com as palavras, jogando com as mesmas e
usando rimas. Desta maneira, invertendo papéis dos personagens, tratam
do inesperado e dão graça às situações propostas.
E esse recurso, o humor,
nessa obra, alcança seu ápi-
ce em uma das cenas finais,
quando o pretendente que
conseguiu cumprir todas as
tarefas estipuladas pela prin-
cesa, ao receber um beijo dela,
transforma-se em sapo e, de
tão decepcionado, vai embora
a deixando solteira e feliz para
sempre.
Por tais situações, per-
cebe-se que se trata de uma
obra cômica que se utiliza de
conteúdos e formas (algumas)
já conhecidas, brinca com elas,
sem definir previamente o
resultado. Contudo, ao chegar
ao desfecho surpreendemo-nos
com a astúcia e veemência da
protagonista em conseguir
se livrar do príncipe. Nessa
situação, o masculino não é
desejado nem o casamento é
esperado como recompensa
ao feminino, diferenciando-se
da maioria das obras literárias
infantis. Dória (2008, p. 66)
faz referência a isso quando afirma que: “A marca de tal criação é a liberdade:
conceitos, verdades estabelecidas, estilos de narrar, tudo poderá ser remexido
e alterado, e o resultado será sempre uma obra que faz pensar, choca, inova, ou
simplesmente faz rir”.
A possibilidade de ser feliz sem alguém ao lado definitivamente não faz
parte dos discursos em torno do amor romântico na nossa sociedade. Até porque
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é atribuído(a) ao(à) parceiro(a) a responsabilidade de fazer o(a) outro(a) feliz
e acompanhá-lo(a) até a velhice. Enquanto solteira, a pessoa já é vista com um
certo estranhamento: aos homens é atribuída a desconfiança da homossexuali-
dade e às mulheres, a probabilidade de serem pessoas difíceis de conviver, com
um “gênio ruim” ou uma feiúra repulsiva.
Comumente, a forma de referir-se à mulher nas obras literárias infantis
pode ser vista principalmente na representação visual das mães, pois elas são
talhadas como exemplos de proteção, carinho e ternura. Frequentemente é as-
sociada a imagens femininas uma ideia leve, suave, meiga, comportada, como
o tipo ideal de feminilidade. Em poucas histórias, como a citada, as mulheres
já se arriscam a ter comportamentos explosivos, mostrando raiva, indignação,
medo e indiferença, diferenciando-se da grande maioria.
Quero ressaltar que a crítica não se instaurou uma ação de encalço,
condenando a autora e ilustradora dessa produção. Mesmo porque, cada texto
expressa um momento do autor e cada obra pode ter diferentes interpretações
que podem ser relacionadas a um contexto mais amplo. Todavia, saliento a
importância de ter me reportado ao caso, com o intuito de instigar a percepção
dos(as) leitores(as) sobre as representações presentes neste enredo a respeito
das relações amorosas.
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