Histórias e Práticas sociais
É importante salientar que as pessoas sempre manifestaram interesse
em narrar. Apreciam filmes, novelas de televisão ou romances porque, funda-
mentalmente, esses gêneros contam uma história. Quando ainda não existiam
esses veículos de comunicação, eram as reuniões familiares e comunitárias –
manifestações primeiras – que assumiam essa função. Várias condições podem
2 Poder atribuído a alguém ou a algo por meio de práticas sociais recorrentes.
PIRES, S. M. F. Amor romântico na literatura infantil: uma questão de gênero
Educar, Curitiba, n. 35, p. 81-94, 2009. Editora UFPR
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propiciar esse interesse particular que possuímos pelas histórias. Em primeiro
lugar, o fato de a própria vida poder ser entendida como uma história – suces-
são de acontecimentos e emoções. Um outro motivo, que talvez justifique essa
paixão, é a identificação com os sentimentos dos personagens. Para ilustrar tais
afirmações, cito um trecho de uma obra de Fanny Abramovich (1997, p. 17,
grifo da autora) na qual corrobora que
é através duma história que podemos descobrir outros lugares, outros
tempos, outros jeitos de agir e de ser, outra ética, outra ótica... É ficar
sabendo História, Geografia, Filosofia, Política, Sociologia, sem precisar
saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem cara de aula...
Porque, se tiver, deixa de ser literatura, deixa de ser prazer e passa a ser
Didática, que é outro departamento (não tão preocupado em abrir as portas
da compreensão do mundo).
Nesse sentido, pode-se também destacar a história como alimento da ima-
ginação humana: na vida real, os fatos se sucedem rotineiramente; na história,
ao contrário, tudo é possível. Inexistem barreiras entre fantasia e realidade.
Dessa forma, as obras literárias entendidas como artefatos culturais le-
gitimadores de identidades sociais e de gênero, estabelecem relações de poder
entre leitores/as e escritores/as de tais textos, constituindo um circuito produtor e
reprodutor de práticas sociais masculinas e femininas consideradas ideais. Sendo
assim, um livro de história infantil como produto cultural e analisado sob a pers-
pectiva na qual fundamento minha tese, pode apresentar características sensíveis
em relação a: práticas de significação, relações sociais e subsequentes relações
de poder ou ainda, prática produtora de identidades sociais e de gênero.
Quando afirmo que tais aspectos podem estar presentes na literatura,
refiro-me às representações de gênero contidas em tais obras com o intuito de
negociar, conflitar e, por fim, legitimar identidades masculinas e femininas. É
importante ressaltar, aqui, que fundamento minha concepção de representação
no pensamento pós-estruturalista e a compreendo como o conjunto de crenças,
ideias, opiniões, percepções, etc., enfim, significados sociais atribuídos por
uma pessoa ou por um grupo sobre algo ou alguém. Todavia, tais significados
são efêmeros, uma vez que estão expostos ao tempo e ao lugar e, assim sendo,
eles, constantemente, deslizam e se contrapõem a certezas e interpretações
únicas. Dessa forma, as representações são constituídas e reconstituídas na e
pela cultura.
Costuma-se dizer que as narrativas constituem uma das práticas discursivas
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mais importantes de nossas vidas. Tomo emprestado o conceito de Foucault
(1987, p. 136) sobre prática discursiva: “é um conjunto de regras anônimas,
históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma
época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada,
as condições de exercício da função enunciativa”.
Com essa definição, percebemos o quão efêmero e cambiante é o momento
de uma narrativa, pois elas são constituídas de formas diferentes dependendo
do momento, do lugar e das pessoas envolvidas. Jorge Larrosa (1996, p. 462)
compreende as narrativas, “não apenas como reveladoras de histórias de outros:
elas também contam histórias sobre nós e o mundo em que estamos e, neste
sentido, nos ajudam a dar sentido, ordem, às coisas do mundo e a estabilizar e
fixar nosso eu”.
Narrar está estreitamente conectado com a produção de nossas identidades.
São nas narrativas, entre outros processos, que variados poderes atuam para
fixar as identidades dos grupos tanto privilegiados como desprivilegiados, em-
bora sejam também nas narrativas que esses grupos podem afirmar identidades
diferentes daquelas descritas pelas narrativas hegemônicas. Desse modo, as
narrativas também contribuem para constituir um mundo onde devemos nos
alojar, onde devemos encontrar um lugar.
Ao tomarmos um livro para leitura, por vezes, é de fácil percepção os
efeitos de verdade que as representações contidas nele produzem. Tais significa-
dos se estabelecem por meio de relações sociais experimentadas no dia-a-dia e
registradas na literatura, contribuindo desta forma para um constante ir e vir, re-
conhecendo que as histórias infantis produzem e são produzidas pela cultura.
Nesse sentido, acredito que as narrativas e as histórias são formas de
conhecermos pessoas, de nos localizarmos no tempo, de atribuirmos conceitos,
de legitimarmos comportamentos; não são interpretáveis por si sós. Elas per-
tencem a um contexto e “carregam” consigo histórias anteriores. “Cada pessoa
se encontra já imersa em estruturas narrativas que lhe pré-existem e em função
das quais constrói e organiza de um modo particular sua experiência, impõe-lhe
um significado” (LARROSA, 1999, p. 70).
Dessa forma, pode-se afirmar que as representações são culturalmente
construídas, cambiantes e mutáveis, uma vez que são constituídas em um
determinado lugar em um certo tempo. Os sujeitos também “negociam” as
representações já legitimadas, havendo, assim, trocas, substituições, releituras,
construções sucessivas.
Interessante ressaltar, aqui, a afirmação que Silveira (2006, p. 2) faz em
relação ao intento dos autores ao escreverem suas obras literárias:
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mesmo a literatura infantil produzida nos anos mais recentes que se
pretende “emancipatória” ou “não pedagogizante”, “não moralizante”,
não foge à contingência de carregar consigo representações de mundo,
consciente ou inconscientemente nela plasmadas pelo autor, assim como
não pode sofisticar demais seus recursos formais, sob pena de ser rejeitada
pelo leitor infantil.
Por conta disso, deve-se entender que tanto os/as leitores/as (tomados aqui
em seu sentido mais amplo – leitores/as do mundo) como os/as escritores/as são
constituintes das culturas e que as representações imagéticas e verbais presen-
tes nas obras literárias podem representar o esperado desejável e o indesejável
em uma determinada sociedade, pois ao mesmo tempo em que produzem (os
escritores) e legitimam representações sociais em suas histórias, suas histórias
são legitimadas e produzidas pelos leitores nas práticas das quais fazem parte.
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