Quisling, ou seja, encontrar uma base de poder nativa para dar apoio ao seu
domínio: O confronto entre os tanques russos e a resistência inteiramente não-
violenta do povo da Tchecoslováquia é um caso típico de uma confrontação entre
a violência e o poder em seu estado puro. Porém, enquanto é a dominação nessas
circunstâncias difícil de ser realizada, não é de todo impossível. A violência, é
necessário lembrar, não depende de números ou de opiniões, mas sim de formas
de implementação, e as formas de implementação da violência, conforme
mencionei mais acima, como todos os demais instrumentos, aumentam e
multiplicam a força humana. Aqueles que se opõem à violência com o mero
poder, cedo descobrirão que se confrontam não com homens, mas sim por
artefatos fabricados pelo homem, cuja desumanidade e força de destruição
aumentam em proporção à distância a separar os inimigos. A, violência sempre é
dado destruir o poder; do cano de uma arma desponta o domínio mais eficaz, que
resulta na mais perfeita e imediata obediência. O que jamais poderá florescer da
violência é o poder.
Em um conflito entre a violência e o poder, o resultado é raramente
duvidoso. Se a estratégia enormemente poderosa e bem-sucedida de resistência
não-violenta de Gandhi houvesse se defrontado com um inimigo diverso – a
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Rússia de Stalin, a Alemanha de Hitler, ou o Japão do período anterior à guerra,
ao invés da Inglaterra – o resultado não teria sido a descolonização, mas sim o
massacre e a submissão. Entretanto, a Inglaterra na Índia e a França na Argélia
tinham boas razões para exercerem o seu autocontrole. O domínio através da
violência pura vem à baila quando o poder está em vias de ser perdido; é
precisamente o poder em decréscimo do governo russo, interna e externamente,
que tornou-se patente na alternativa entre descolonização e massacre. Substituir
a violência pelo poder pode trazer a vitória, porém o preço é muito alto: pois é
pago não apenas pelo derrotado, mas também pelo vitorioso em termos de seu
próprio poder. Tal coisa é verdadeira principal mente quando o vitorioso tem o
privilégio de desfrutar dos benefícios de um governo constitucional. Henry Steele
Commager está inteiramente certo ao afirmar: “Se subvertermos a ordem e
destruirmos a paz mundiais deveremos inevitavelmente subverter e destruir
nossas próprias instituições políticas em primeiro lugar”
74
. O temido efeito
boomerang do “governo das raças subjugadas” (Lord Cromer) sobre o governo
interno durante o período imperialista significava que o domínio através da
violência nas terras distantes terminaria por afetar o governo da Inglaterra, e que
a última raça a ser subjugada seriam os próprios ingleses. O recente ataque a gás
no campus de Berkeley, onde não apenas gás lacrimogêneo, mas também um
outro gás, “proibido pela Convenção de Genebra e usado pelo Exército para o
extermínio de guerrilheiros no Vietnam” foi disseminado enquanto os policiais,
usando máscaras protetoras, evitavam que qualquer pessoa “fugisse da área
infestada pelo gás”, é um excelente exemplo desse fenômeno de boomerang. Diz-
se freqüentemente que a impotência gera a violência, o que psicologicamente é
verdadeiro, pelo menos quanto às pessoas possuidoras de vigor natural, moral ou
fisicamente. Politicamente falando, a questão é que a perda do poder torna-se
uma tentação em substituir a violência pelo poder – em 1968 durante a
Convenção Democrata em Chicago podia-se assistir a esse processo pela
televisã0
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– e que a violência por si própria resulta em impotência. Quando a
violência não é mais apoiada pelo poder, que ao mesmo tempo a restringe, a
conhecida inversão dos meios pelos fins terá acontecido. Os meios, meios de
destruição, determinam agora os fins – com a conseqüência de que os fins serão a
destruição de todo poder. Em lugar algum é o fator da autofrustração, existente
na vitória da violência sobre o poder, mais evidente do que no emprego do terror
para a manutenção do domínio, de cujos estranhos sucessos e eventuais
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fracassos temos mais conhecimento do que qualquer geração anterior. O terror
não é a mesma coisa que a violência; é antes a forma de governo que nasce
quando a violência, após destruir todo o poder, não abdica, mas, ao contrário,
permanece mantendo todo o controle. Pode-se observar que a eficácia do terror
depende quase que inteiramente do grau de atomização social. Todos os tipos de
oposição organizada deverão desaparecer para que seja liberada a força total do
terror. Essa atomização – palavra demasiadamente pálida e acadêmica para o
horror que designa – mantém-se e se intensifica através da ubiqüidade do
informante, que poderá tornar-se literalmente onipresente uma vez que não se
trata mais de um agente profissional a soldo da polícia, mas potencialmente toda
e qualquer pessoa com a qual se estabeleça contacto. Como é criado um estado
policial a tal ponto desenvolvido e a maneira como funciona – ou, antes, como
nada funciona onde ele impera – é o tema do livro de Aleksandr I. Solzhenitsyn “O
Primeiro Circulo”, que permanecerá provavelmente sendo uma das obras-primas
da literatura do século vinte contendo certamente a melhor documentação
existente sobre o regime de Stalin
76
. A distinção decisiva entre o domínio
totalitário, baseado no terror, e as tiranias e ditaduras, impostas pela violência, é
que o primeiro volta-se não apenas contra os seus inimigos, mas também contra
os amigos e correligionários, pois teme todo o poder, até mesmo o poder dos
amigos. O clímax do terror é alcançado quando o estado policial começa a devorar
os seus próprios filhos, quando o carrasco de ontem torna-se a vítima de hoje. É
este o momento quando o poder desaparece inteiramente. Existe atualmente um
grande número de explicações plausíveis para a desestalinização da Rússia –
nenhuma delas tão convincente como a compreensão por parte dos próprios
burocratas stalinistas de que a continuação do regime levaria, não à insurreição,
contra a qual o terror é realmente a melhor salvaguarda, mas à paralisia do país
inteiro.
Resumindo: politicamente falando, é insuficiente dizer não serem o poder e a
violência a mesma coisa. O poder e a violência se opõem: onde um domina de
forma absoluta, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder esteja em
perigo, mas se se deixar que percorra o seu curso natural, o resultado será o
desaparecimento do poder. Tal coisa ‘significa que não é correto pensar na não-
violência como o oposto da violência; falar do poder não-violento é realmente uma
redundância, A violência pode destruir o poder, mas é incapaz de criá-lo. A
grande confiança de Marx e Hegel no “poder dialético da negação” em virtude do
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qual os opostos não se destroem, mas sim desenvolvem-se naturalmente
transformando-se um no outro, visto que as contradições promovem, ao invés de
paralisar o desenvolvimento, repousa em um preconceito filosófico muito mais
antigo: o de que o mal é nada mais do que uma forma de privação do bem; que o
bem pode originar-se do mal; e que, em resumo, o mal nada mais é do que a
manifestação temporária de um bem ainda oculto. Tais opiniões que o tempo
consagra, tornaram-se perigosas. Compartilham-nas muitos que jamais ouviram
falar de Hegel ou Marx, pela simples razão de que elas inspiram esperança e
eliminam o temor – uma esperança traiçoeira a eliminar o terror legítimo. Com
essas considerações, não pretendo equacionar a violência com o mal; desejo tão-
somente salientar que a violência não pode originar-se de seu oposto, que é o
poder, e que para compreendê-la pelo que é, teremos que proceder ao exame de
suas raízes e sua natureza.
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