Processo de reassentamento de Piquiá de Baixo: conquistas e desafios
Os moradores de Piquiá perceberam o quanto era um imenso desafio buscar a
punição das empresas cadeia minero-siderúrgica, de natureza transnacional, porque elas
muitas vezes desviam-se das responsabilidades corporativas ao terceirizarem suas
atividades em locais onde se instalam. Como detalha Saldanha e Bohrz (2018, p. 188),
estas empresas também contam, em alguns contextos, com a fragilidade das instituições
que atuam de forma precária para responsabilizá-las ou fiscalizá-las, e com a corrupção,
práticas que favorecem a edição de normas que atendem aos interesses econômicos da
mineração e perpetuam a vulnerabilidade das populações.
Para as empresas transnacionais operarem, buscam a territorialização, agentes e
princípios que alavanquem seus propósitos, embora aleguem a desterritorialização para
escapar das leis locais e da responsabilização jurídica (SALDANHA E BOHRZ, 2018, p.
191). Essa contradição também se fortalece pela ausência de normativas internacionais
mais consistente quanto à violação de Direitos Humanos em contextos de conflitos
socioambientais.
Há esforços nacionais, especialmente através da sociedade civil organizada, e
iniciativas internacionais no tocante a pressionar as empresas e também Estados a
mudaram suas dinâmicas e implementarem efetivamente o respeito aos Direitos
Humanos. Em 2011, a ONU aprovou os Princípios Orientadores sobre empresas e
Direitos Humanos, que são um parâmetro global (RIBEIRO et al, 2019, p. 57). Seguem
os três preceitos, de proteger, respeitar e remediar. Destacam que Estados têm a obrigação
de fazer com que leis que exigem o respeito aos Direitos Humanos sejam cumpridas pelas
empresas; indicam que a responsabilidade corporativa envolve os direitos
internacionalmente reconhecidos e, quanto aos mecanismos de reparação, aponta que os
Estados devem garantir, em casos de abusos e desrespeito, efetivos mecanismos de
reparação, além de meios para registro de reclamações e denúncias. Apesar da sua
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A ata de função da “União Comunitária dos Moradores de Pequiá” certifica que a mesma foi constituída
em 29 de setembro de 1989. Na ocasião, o grupo de moradores, liderado por Francisco R. Moderno, buscava
o “desenvolvimento do município de Açailândia, tendo em vista os projetos elaborados pela Secretaria de
Ação Comunitária, entre outros”. Os registros sobre a mobilização contra a poluição no bairro surgem em
atas do ano de 2009, com organização de ações e das reinvindicações.
importância, os Princípios Orientadores não são normas que podem ser exigidas
juridicamente. Possuem caráter voluntário e não criam obrigações legais para
organizações e poderes públicos.
O enfrentamento de um modelo de desenvolvimento que não assegura os direitos
fundamentais, no caso específico de Piquiá, que estamos tratando nesse artigo, se
concretizou através de uma mobilização local, com articulações nacionais e
internacionais, para apontar novos caminhos através da “convergência dos movimentos
sociais” e o questionamento de um modelo pautado pela exploração econômica, expansão
capitalista e concentração de renda (ALMEIDA, 2012, p.123). É importante registrar que
essa movimentação das comunidades atingidas pela mineração ocorreu em uma
conjuntura de intensificação do capital internacional.
A luta de Piquiá contra as empresas poluidoras do polo siderúrgico municipal tem
se dado de muitas formas: denúncias, manifestações, processos judiciais e incidência
política. Ao longo dos anos a comunidade foi agregando aliados, como os Missionários
Combonianos (congregação católica italiana, que está presente em Açailândia desde a
década de 90), o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos – Carmén Bascaran
e da rede Justiça nos Trilhos, esta última nasceu em 2007 como campanha e se consolidou
enquanto rede de atuação em prol de comunidade impactadas pelo setor minero-
siderúrgico no Corredor de Carajás.
As famílias de Piquiá de Baixo vivem há décadas em meio a poluição gerada pelas
siderúrgicas e em 2008, por meio de uma assembleia de moradores, optaram pelo
reassentamento coletivo, que tem sua base de monitoramento e coordenação no Inquérito
Civil Público n. 001/2011 que tramita na 2.ª Promotoria de Justiça, em Açailândia. Até o
ano de 2012, a comunidade lutou para que fosse formada uma mesa de negociação onde
estivessem presentes o Estado, o poder público municipal, as siderúrgicas e a Vale S.A.
No relatório “Brasil: quanto valem os direitos humanos? – Os impactos sobre os
direitos humanos relacionados à indústria da mineração e siderurgia em Açailândia”,
publicado em maio de 2011 pela Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH)
em parceria com a rede Justiça nos Trilhos e a Justiça Global (organização membro da
FIDH) são descritas e analisadas as violações de direitos causadas pelas atividades da
cadeia minero-siderúrgica no município de Açailândia, em especial para a comunidade
de Piquiá de baixo.
O informe concentrou-se “no exame aprofundado do direito à saúde e do direito a
viver em um meio ambiente saudável, com base no direito nacional e internacional
aplicável” (FIDH, 2011, p. 16) e descreve brevemente outros direitos a eles vinculados
como direito à moradia adequada, vida e integridade física, informação e recurso jurídico
efetivo. A análise se concentrou nas obrigações do Estado (respeitar, proteger e garantir
os Direitos Humanos), na responsabilidade de todos os agentes envolvidos (privados e
públicos) e por fim na recomendava 39 medidas para mitigação dos impactos já existentes
e prevenção de novas violações.
Em maio de 2019, a FIDH juntamente com a Justiça nos Trilhos publica novo
relatório: “Piquiá foi à luta: Um balanço do cumprimento das recomendações para
abordar as violações aos direitos humanos relacionadas à indústria da mineração e da
siderurgia em Açailândia, Brasil”, a fim de analisar a efetivação das recomendações
realizadas no informe de 2011. O novo informe aponta que mesmo que tenha ocorrido
avanços no processo de reassentamento “o Estado, em suas diferentes escalas, não
consegue estruturar uma estratégia [...] para o devido enfrentamento dos problemas de
saúde derivados da contaminação ambiental, produzida pelas siderúrgicas e pela Vale
S.A.” (FIDH, 2019, p. 7).
Desse modo, as iniciativas do Estado são respostas as reivindicações da própria
comunidade. Sendo, portanto os moradores os protagonistas na busca por reparação dos
direitos violados e na efetivação da cidadania:
De fato, o processo de reassentamento de Piquiá de Baixo foi o aspecto
desse caso que mais avançou entre os anos de 2011 e 2018. Após uma
longa espera, as obras para a construção do novo bairro foram iniciadas
em novembro de 2018. Neste período, os moradores de Piquiá de Baixo
conquistaram a propriedade definitiva do terreno para o
reassentamento, construíram, com o apoio de uma assessoria técnica
custeada com recursos das siderúrgicas, o plano urbanístico do novo
bairro do Piquiá da Conquista, e garantiram o arranjo financeiro para o
custeio das obras, com aportes da Caixa Econômica Federal (CEF), do
Sindicato das Indústrias de Ferro Gusa do Maranhão (Sifema) e da Vale
(FIDH, 2019, p. 20).
Todos os investimentos, necessários a construção do novo bairro, só ocorreram
após manifestações e cobranças por parte dos moradores, além da atuação da Defensoria
Pública e do Ministério Público e de uma constante incidência política junto a órgãos
internacionais de proteção aos direitos humanos nos âmbitos da Organização das Nações
Unidas (ONU) e da Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos, cujo o caso de Piquiá foi tema em 2015.
Mesmo quando o processo acenava transcorrer sem sobressaltos, a atuação dos
moradores acabava por se tornar imprescindível. Foi, por exemplo, o que ocorreu após a
assinatura do contrato de 1ª fase do projeto, em maio de 2016, junto à Caixa Econômica
Federal. Essa fase compreendia a elaboração, análise e aprovação do projeto executivo
da obra e só foi finalizada após protesto de um grupo de 50 moradores em frente a
Superintendência da Caixa, em São Luís, em setembro de 2018.
Outro fator agravante, segundo aponta o relatório da FIDH (2019), com base na
resposta do governo estadual, é que as siderúrgicas de Açailândia não cumprem todas as
condicionantes exigidas pelo órgão ambiental, de modo que as licenças de operação não
foram renovadas nos últimos oito anos. Isso significa que, enquanto o novo bairro não é
construído, a população de Piquiá continua sofrendo com a forte poluição. E, embora a
comunidade tenha experimentado conquistas importantes na luta por viver dignamente,
elas são, sobretudo, resultado de um processo de mobilização cidadã, da busca coletiva
pela efetivação de direitos e reparação de violações. No final de 2018, teve início as obras
ainda assim há muitos desafios a serem enfrentados até a concretização do Piquiá da
Conquista, como deve ser chamar o novo bairro.
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