estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e562, 2019.
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era, de resto, uma prova evidente): publicado em 1977, no momento em que o regime começa a
vacilar, mostrando os primeiros sinais da sua queda iminente, diante de uma oposição popular
montante, o conto fala, na verdade, da possibilidade de o Brasil se livrar em breve do domínio
dos militares. O casarão “todo iluminado” (Telles, 1984, p. 185), ocupado enfim pelos ratos é,
nesse sentido, a imagem de um país finalmente clareado pela luz da democracia.
Como se vê, Lygia explora a imagem drummondiana para tecer um discurso sobre a
previsível derrubada da ditadura. De fato, os ratos, com o seu instinto destruidor, têm, nesse
caso, uma função positiva, liberando o Brasil de um poder opressivo, representado por figuras
improváveis (o “Assessor da Presidência da RATESP”, o “Diretor das Classes Conservadoras
Desarmadas e Armadas”...) que acabam fugindo de modo desbragado diante da invasão e da
tomada de posse do edifício por parte deles. A presença dos bichos, então, não remete para uma
situação de perigo iminente ou de drama prestes a desatar, como em A peste de Albert Camus,
associando-se, ao contrário, a uma perspectiva de vingança contra o poder soberano, assumindo
os tons de uma fábula no sentido que lhe atribuiu Michel Foucault, ou seja, de “aquilo que
merece ser dito” (Foucault, 2009, p. 237-255). A esperança do fim do totalitarismo, então,
aparece “marcada por um toque de impossível” porque só assim ela se torna dizível: nesse
sentido, o surrealismo do conto de Lygia tem mais a ver com o caráter mágico do Flautista de
Hamelin, com a história do vingativo e feroz “caçador de ratos”, de que com a inquietante
incumbência do trágico, presente no romance de Camus ou no poema de Drummond e
simbolizada pela presença desses animais, portadores de epidemias devastadoras ou ocupados
em destruir os vestígios do passado, deixando atrás de si um panorama de ruínas.
De resto, todo o Seminário dos ratos é atravessado por eventos surreais até se tornar, talvez,
o lugar textual onde com mais contundência a escritora mistura o onírico e o real, o
inquietante e o familiar. Utilizando, justamente, as categorias freudianas de Unheimlich
(“perturbante”) e de Heimlich (ao mesmo tempo, “familiar” e “secreto”) (Freud, 1919/1982, p.
241-274),
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podemos de fato acompanhar o desenrolar-se do fio narrativo ligando os contos
que compõem o volume. Um volume, aliás, que ocupa uma posição cronológica e
ideologicamente central e estratégica na produção de Lygia Fagundes Telles, exatamente pelo
fato de alinhar alguns textos onde aparecem fatos e personagens “verossímeis” e outros onde
prevalece o elemento fantástico – caráter ambíguo, balançando entre realidade e ficção, que
identifica em geral a sua prosa e que já foi assinalado, quase desde o início, por vários
críticos.
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Ao lado fantástico e inquietante (Unheimlich) da sua prosa narrativa, a escritora irá
dedicar, aliás, um livro antológico intitulado Mistérios (Telles, 1981),
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no qual aparecem, não
por acaso, diversos contos já incluídos em Seminário dos ratos – volume, de resto, onde
também a representação, quase minuciosa, do cotidiano guarda um peso notável (estou
pensando em contos como “Senhor Diretor”, demorado monólogo interior de uma solteirona
dividida entre a repressão dos desejos carnais e o pesar da sua situação de absoluta e
irremediável solidão; ou como “O X do problema”, em que a autora nos mergulha numa
situação de marginalidade e pobreza, descrita de forma fortemente realista, utilizando
sobretudo o diálogo e se servindo de uma linguagem sem rodeios e sem requintes).
Sendo, então, uma travessia de registros diversos (do grotesco, ao irônico e ao trágico),
sendo um livro que passa por experiências narrativas diferenciadas (do conto fantástico ao
hiper-realista), sendo, enfim, um volume que junta e coliga assuntos aparentemente muito
distantes (da alegoria política até o insight doloroso sobre problemas éticos e sociais) – sendo,
em suma, uma obra complexa e repleta de sentidos (uma “sátira” talvez, ou seja, uma satura
lanx no seu significado originário de “prato cheio”), Seminário dos ratos poderia ser considerado
quase uma mise en abîme de toda a produção narrativa de Lygia, ocupando, aliás, uma posição
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É bom lembrar como o fundador da psicanálise, para ilustrar, nessas páginas, o funcionamento do “inquietante”, recorra mais uma
vez às fábulas ou aos contos de terror, analisando, em particular, obras de E.T.A. Hoffmann e de Wilhelm Hauff.
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Para uma bibliografia crítica completa sobre a narrativa de Telles, é indispensável consultar o importante volume que a ela tem
dedicado o Instituto Moreira Salles, em seu Cadernos de Literatura Brasileira, n. 5 (IMS, 1998, p. 112-125).
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Com uma importante orelha escrita por Fábio Lucas.
Amor, humor e terror na ficção de Lygia Fagundes Telles
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