peremptória nem prescritiva, mas continuamente reversível, aberta de modo incessante para
outras hipóteses hermenêuticas, pode eventualmente patentear – cientes, justamente, do caráter
–––––––––––– Ettore Finazzi-Agrò
estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e562, 2019.
19
ilusório (que, como se sabe, vem do latim in-ludere, “brincar com (e dentro de)”, mas também,
“zombar”, “enganar”) da literatura. A linearidade do desenvolvimento narrativo e o caráter
transparente da estrutura significante (a “bolha de sabão”, mais uma vez) rebentaria, assim,
deixando atrás de si apenas um novelo ou uma mancha pegajosa de significados a serem sem
fim polidos e destrinçados – ficando longe, por isso, de qualquer norma ou gramática da
representação e se atendo, ainda e sempre, à perspectiva apontada por Silviano Santiago de
uma sobreposição ou de um cruzamento constantes entre o “contar direito” e o “contar
mentiroso” que abrem para um “lugar ficcional híbrido e espaçoso”, riscado por “um
emaranhado de linhas” (Santiago, 1998, p. 102).
A questão que resta, talvez, é como conciliar tudo isso, de forma lógica, com a função
testemunhal que Lygia atribui a si mesma enquanto escritora: ou seja, se a assunção de uma
realidade disfórica ou até trágica por parte da autora está sempre vinculada a uma “suspeita do
avesso”, a uma dimensão discursiva “egoísta e auto-suficiente” (Santiago, 1998, p. 102), à
virtualidade, enfim, de uma leitura irônica ou até bem-humorada dos dramas sociais e
humanos, como levar a sério o seu engajamento e a sua vontade de testemunhar uma condição
marcada pela desigualdade ou pela incumbência do Fado? Acho que a resposta só possa ser
encontrada, mais uma vez, naquele entremeio entre a possibilidade de dizer uma verdade que
não se possui (ou que não pode ser colocada em palavras) e a impossibilidade de denunciar que
só se torna instantaneamente efetiva através da árdua e intermitente possibilidade de falar em
nome e por conta daqueles que (já) não podem. Nessa “inseparável intimidade” entre o virtual
e o contingente, nesse ponto ilocável onde “um possível vem a existir” se relacionando com a
impossibilidade (Agamben, 1998, p. 137, tradução nossa), é que se coloca, precariamente e
teimosamente, a testemunha, reafirmando continuamente a posição liminar do sujeito, suspenso
entre “o que é” e “o que pode (vir a) ser”:
Me alinhei ao lado dos humildes e descobri que não era bastante humilde para ficar junto
deles, falsa a minha curvatura, falso o meu despojamento. Me alinhei ao lado dos fortes e
vi que não era suficientemente forte para sustentar por mais tempo aquela arrogância [...].
Teria que subir acima desse rolo, pisar nele – ah, meu Deus, mas era isso o que eu queria?
Não, também não era isso. Quis ficar só para ser verdadeira, agora queria apenas ficar só e
então sonhei que era uma rainha num coche desgovernado [...]. Mas quem me detesta
tanto assim para me atacar até no sonho? quis saber e nesse instante vi minha imagem
refletida no espelho (Telles, 1980, p.14).
Acho que toda a produção de Lygia Fagundes Telles nos fala – nessa perspectiva solidária e,
ao mesmo tempo, solitária, em que o “eu” se espelha apenas na sua angustiante e envergonhada
incapacidade de testemunhar –, de um mundo cambaleante e incerto, onde ao escritor não resta
senão assumir uma posição também ela duvidosa e enigmática, expressa, porém, sempre
através de uma “caligrafia firme” que nos conduz nos meandros da realidade (histórica, social,
humana...) exprimindo, na oscilação entre o humor (e o afastamento irônico a respeito dos
trágicos acontecimentos por ela contados) e o amor (e a com-paixão em relação aos outros), a
sua escolha de afirmar o possível através do impossível (e vice-versa), de encontrar a
pontualidade do sujeito na dispersão dos objetos que o rodeiam (e vice-versa).
A conclusão nesse sentido, como numa ciranda de pensamentos, não pode senão remeter
para as considerações iniciais, identificando no conluio entre a dimensão da memória e a da
invenção a cifra mais evidente da narrativa dessa grande escritora que é testemunha do seu
tempo na medida em que ela reinventa o real na rememoração dele – para o tornar, enfim,
representável em toda a sua inverossímil verossimilhança e aberto para um leitor que é
destinatário e cúmplice, na ilusão de uma ficção que aparenta ser verdadeira e na de-lusão de
uma verdade que se mostra sempre, tragicamente ou ironicamente, fictícia.
Daí, mais uma vez e até o fim, a pergunta tremenda e irrespondível: “A invenção fica sendo
verdade quando se acredita nela?”