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estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e562, 2019.
Lygia enfrenta, em suma, aquele que pode ser pensado como o paradoxo do testemunho que
assim foi definido por Giorgio Agamben: “o testemunho é uma potência que se dá realidade
através de uma impotência de dizer e uma impossibilidade que se dá existência através de uma
possibilidade de falar” (Agamben, 1998, p. 136, tradução nossa). Com efeito, quem testemunha
é legitimado a falar apenas em nome e por conta de quem não tem (mais) voz, ou seja, daquela
que Agamben define a “testemunha integral”: a pessoa/não-pessoa que não pode (mais) contar
a experiência pela qual ela tem passado. Não por acaso, a escritora, depois de ter reafirmado a
natureza engajada da sua ficção, pede desculpa ao leitor pela sua incapacidade de dar respostas
sobre o gesto criativo, sobre a incidência efetiva da prática artística no âmbito social e humano.
E o constrangimento dela parece corresponder ao embaraço e à vergonha do superstes (do
sobrevivente em relação ao testis) que se dá conta de poder testemunhar apenas o Impossível
vivido pelos outros (a morte, a carência sem remédio, a miséria e o desamparo...); de poder,
enfim, apelar apenas para o “mistério”, reafirmando o intervalo e a não coincidência entre o fato
(o acontecido) e o ato (a representação daquilo que aconteceu; a performance como organização
ficcional da heterogeneidade e da natureza indizível de uma experiência extrema).
Assim mesmo, ela continua ciente de não conseguir se furtar ao seu papel de escritora
comprometida com a realidade trágica que a rodeia, apontando, por isso, para uma possível
solução do impasse em que se encontra:
Ainda assim, sei que muitas vezes recorro ao humor. A salvação no humor. Meu pai era
um jogador viciado na roleta. Fichas. Eu jogo com as palavras. Hoje nós perdemos, ele
dizia, mas amanhã a gente ganha. Este livro não deu certo? Vamos apostar no próximo
(Telles, 2002, p. 90).
A literatura como jogo e como risco, então, costurada ou atravessada pelo “humor” que
consegue contornar a impossibilidade do testemunho graças à ironia, ao olhar enviesado
sobre uma realidade que não pode ser assumida por completo pela prática artística e que
deve, por isso, ser colocada em perspectiva, descontando a sua insuficiência performativa
na consciência de estar “jogando” com as palavras.
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Escrever de viés, de um lugar entre sério e cômico, para chegar a assumir um papel
fundamental: o de ultrapassar a fronteira entre autor e leitor para poder testemunhar a dor,
a solidão e o desamparo sem ficar preso na impossibilidade de falar, mas confiando naquilo
que se diz entre ou através das palavras:
Apostar no escritor, esse escritor que pode estar desesperado e ainda assim não vai
desesperar o leitor, ao contrário, pode até passar-lhe algum idealismo. Algum sonho. O
escritor que pode ser um demente e, no entanto, vai afastar o leitor da demência. Ou do vício.
O escritor que pode ser um triste mas vai fazer rir o leitor, olha aí o humor. O escritor que
sendo um solitário, será a companhia daquele que está na solidão (Telles, 2002, p. 90-91).
O jogo sério da literatura guarda então, para Lygia Fagundes Telles, um valor catártico,
indo na contramão não apenas do estado de alma do escritor, mas também do sentido
aparente do texto. De fato, se o autor pode passar “algum sonho” ao seu leitor e se os sonhos
são da natureza daqueles que encontramos em “A caçada” ou em “A mão no ombro”, o seu
caráter de pesadelos ou de prenúncios de morte poderia, nessa ótica, ser lido pelo avesso,
numa infração ou numa reviravolta constante da significação, que diz respeito ao valor
salvífico e até terapêutico da escrita (e da leitura).
Não se pode, evidentemente, inferir disso que toda a produção narrativa de Lygia deveria
ser lida pelo avesso e que onde encontramos a tragédia devemos descobrir, nas entrelinhas, a
comédia, mas se poderia, isso sim, instilar a dúvida de que, como no caso que já apontei do
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