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estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e562, 2019.
saxofone”, inventa a música que, por sua vez, é escutada pela narradora (no caso, também
leitora) e comparada a uma bolha de sabão (Santiago, 1998, p. 109).
Nessa metáfora da bolha de sabão e, sobretudo, do “sopro” que a faz, por instantes, existir e
levantar-se, voando, sobre as coisas e os casos da vida e da morte, podemos, a meu ver,
encontrar uma resposta à nossa interrogação sobre a prosa de Lygia Fagundes Telles, também
ela translúcida e, ao mesmo tempo, opaca, estourando, enfim, sem deixar rastros senão aquela
suspeita de perfeição que ela, precariamente, encerra.
Retomando ainda a ideia de uma irrupção mascarada do elemento transcendente, avançada
por José Paulo Paes, nos encontraríamos assim nas paragens de um pensamento meta-ficcional,
mais uma vez ligado à reflexão sobre as relações entre phoné e lógos: pensamento muito antigo e
que envolve, justamente, a noção mediana e mediadora de pnéuma, “espírito” mas também
“sopro”. Comentando a frase de Platão “pela via onde o lógos me leva como um sopro, lá eu
devo ir” (Platão, República, II, 349d), um intérprete moderno escreveu:
Tocado como um instrumento musical pelo espírito cuja voz lhe sopra no coração e pulsa no
seu respiro, o poeta sabe que aquele lógos é apenas a tradução nas palavras dele da indizível
phoné. E se faz flatus vocis, atravessando o espaço desértico onde “Nada ainda é dito”, onde
“Nada se pode dizer”: se torna discurso-em-sopro (Bologna, 1992, p. 31, tradução nossa).
Tudo isso, portanto, tem a ver com a questão da “inspiração” sobre a qual Lygia volta, a meu ver,
com frequência, construindo contos em que, falando aparentemente de outra coisa, ela questiona de
fato, de forma meta-textual, a própria origem do “contar inspirado”. É o caso, por exemplo, de
“Apenas um saxofone”, incluído em Antes do Baile Verde, onde encontramos este parágrafo:
Onde agora? Às vezes eu fechava os olhos e os sons eram como voz humana me
chamando, me envolvendo, Luisiana, Luisiana! Que sons eram aqueles? Como podiam
parecer voz de gente e serem ao mesmo tempo tão mais poderosos, tão puros? E singelos
como ondas se renovando do mar, aparentemente iguais, só aparentemente. “Este é o meu
instrumento”, disse ele deslizando a mão pelo saxofone. Com a outra mão em concha
cobriu meu peito: “e esta é a minha música” (Telles, 2009, p. 33).
Aquilo que se apresenta como lembrança de um amor perdido guarda, todavia, no interior
dele, a nostalgia por um “som” puro, por um “sopro” inspirado e inspirador que não pode ser
recuperado: “Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do tamanho de um
ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate – trocaria tudo, anéis e dedos, para
poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone” (Telles, 2009, p. 35).
A saudade, de que esse conto é feito, é a saudade por um tesouro imaterial perdido: aquilo
que resta e que sobra é apenas a nostalgia por um “sopro” musical, por uma voz inspirada que
só na reinvenção memorial consegue ser atingida na sua harmoniosa e inefável perfeição.
No atravessamento da obra narrativa de Lygia Fagundes Telles nos deparamos, então, com
uma gama muito ampla de instâncias (tanto físicas quanto metafísicas) e de questões (tanto
textuais quanto meta-textuais), de assuntos e personagens (tanto reais quanto fantásticos)
remetendo porém, todos, para um núcleo problemático que, no meu entender, se encontra
inteirinho e indevassável na obra cronologicamente central da sua produção narrativa. Como
num movimento ao mesmo tempo centrípeto e centrífugo, Seminário dos ratos remete, pela sua
heterogênea homogeneidade, para os livros que o antecedem e seguem, sendo, todavia, o lugar
textual onde todas as experiências narrativas se adensam e se coalham, encontrando a sua
oculta razão de ser. Respondendo a uma pergunta que Clarice Lispector lhe fez, numa
entrevista que se deu, justamente, logo depois do lançamento do Seminário dos ratos, Lygia assim
descreveu, de fato, os textos que compõem aquela coletânea:
São contos que giram em torno de ideias que me envolvem desde que comecei a escrever.
A solidão. O amor e o desamor. A loucura e a morte enfim, tudo isso que aí está em redor.
Com humor, às vezes, sou do signo de Áries, recebo a energia do Sol. E de Deus, o que
vem a dar no mesmo, tenho paixão por Deus (Telles, 2002, p. 174).
–––––––––––– Ettore Finazzi-Agrò
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