estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e562, 2019.
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o inseto representa. E também nesse caso, essa experiência extrema se coloca fora da linguagem e do
sentido, num supra-senso que exclui a possibilidade de ser dito em palavras:
O mundo independia de mim – esta era a conclusão a que eu tinha chegado: o mundo
independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais
compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse
por mim? como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e
eu não entendo o que digo. E então adoro. – – – – – – (Lispector, 1979, p. 175).
É a bem conhecida conclusão da Paixão segundo G.H. onde aquela “fresta metafísica” –
a que aludia José Paulo Paes em relação à prosa de Lygia – é preenchida pelo
inexprimível do gesto silencioso de adoração.
Poderíamos dizer que, no comum apego ao elemento transcendente, a grande diferença entre a
poética de Clarice e a de Lygia consiste exatamente nessa sondagem tateante do mistério da
existência (e da sua representação), que a primeira continua interrogando até o fim, até a exaustão
da linguagem, enquanto a segunda deixa em suspenso a interrogação, fazendo com que a possível
resposta balance no espaço incerto entre escritura e leitura, entre a voz e a escuta. O sobrenatural,
enfim, se naturaliza sem perder a sua carga transcendente em Clarice e o natural desemboca
numa dimensão supra-real (ou para além do real) em Lygia: mulheres, ambas, que conhecem o
peso inconsistente da escrita e que, todavia, sentem (percebem com todos os sentidos) a obrigação
absurda de escrever, para tornar evidente o mistério do existir e do nosso “ser para a morte”. E,
nessa perspectiva, entendemos melhor a análise de Silviano Santiago:
Guiada por dedos, lábios, olhos, ouvidos e nariz, que vão à luta e se engrandecem ou se
frustram diante de obstáculos intransponíveis, a caligrafia firme do narrador dos contos de
Lygia ciceroneia, por sua vez, o leitor pelos diversos caminhos e encruzilhadas por onde
ele circula e circulam os seres humanos (Santiago, 1998, p. 98-99).
É justamente essa “sensualidade cultivada pelo narrador” que “obscurece o conhecimento que
possa ter do mundo e favorece o conhecimento que venha a ter de si mesmo” (Santiago, 1998, p. 98) o
princípio sobre o qual Lygia constrói a sua prática ficcional: numa extroversão em relação ao mundo
que se torna introversão, sondagem íntima sobre si mesma e aproximação passional ao Outro.
Sensualidade, aliás, que encontramos também em muitos textos de Clarice (e com mais
evidência nos contos incluídos em A via crucis do corpo), mas mergulhada numa atmosfera de
desconfiança em relação à possibilidade de perceber através dos sentidos e de exprimir
efetivamente em palavras o mistério do viver. Por isso, a sua inquietação e a sua indagação
saem de uma análise atenta de si mesma para se abrir ao mundo, num movimento igual e
contrário ao de Lygia: Clarice tenta entender o mistério do ser a partir do mistério do “ser-se”
(“a vida se me é”), enquanto a escritora paulista parte da sua relação imediata com as coisas e os
seres para se (e nos) abrir ao mistério daquilo que fica além ou atrás do real; daquilo que se
esconde no questionamento do “eu” em relação ao mundo. A “caligrafia firme” de Lygia
conduzindo o leitor pelos “diversos caminhos e encruzilhadas onde ele circula”, se reflete,
assim, pelo avesso, no estilo tateante e interrogativo de Clarice, que nos leva pelos devaneios de
um pensamento irregular e nos abandona, desamparados, nas encruzilhadas da existência. Os
problemas são, enfim, quase os mesmos, mas expostos, por um lado, de modo a nos conduzir
para um lugar entre (entre a escritura e a leitura, entre a memória e a invenção...); levantados,
por outro lado, num aquém em relação à palavra que os diz e que se resolve apenas num além,
numa ultrapassagem e supressão de toda possibilidade de falar.
A riqueza da literatura brasileira – e, em especial, da literatura feminina – do século passado
poderia ser medida também a partir dessas duas figuras incontornáveis que introduzem, no
universo da ficção, instâncias fundamentais tratadas sem alarde, num tom quase sussurrado em que
a voz, sempre audível, nunca chega a exceder os seus limites, nunca assume um timbre desafinado.
De fato, ainda Silviano Santiago escreveu, a respeito de Lygia, juntando três contos dela:
O sopro da menina que inventa a bolha de sabão é o sopro da contista que escreve sobre a
estrutura da bolha de sabão e é o sopro do saxofonista que, no conto “Apenas um
Amor, humor e terror na ficção de Lygia Fagundes Telles
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