dimensões (o espaço normal e normativo – marcado pela hora de Greenwich – e o espaço-
tempo “exótico”), que se joga o destino da narrativa e da sua impenetrável verdade. Retomando
as considerações de Valéry, enfim, é “na fronteira” que se sustenta o sonho acordado dos
–––––––––––– Ettore Finazzi-Agrò
estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e562, 2019.
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personagens de Lygia: sonho que se pode tornar pesadelo ou sublimação da realidade, ficando,
porém, sempre a meio caminho entre aceitação irônica e recusa assombrada daquilo que já
aconteceu e que volta a nos perseguir como um destino inelutável.
Nessa situação duvidosa, nesse limiar entre duas dimensões se encontra, por exemplo, o
protagonista do conto “A mão no ombro”, ainda do Seminário dos ratos: um homem que passeia
sem rumo num jardim silencioso e desconhecido, perseguido por uma presença misteriosa que
ele imagina ser a própria Morte. Descobrimos a certa altura que essa cena – “como num quadro,
com um homem (ele próprio) fazendo parte do cenário” (Telles, 1984, p. 119) – é, na verdade,
apenas um sonho, mas quando o protagonista acorda ele se convence de que o pesadelo foi, de
fato, uma premonição. Cumpre mesmo assim, para tentar afastar o medo da morte, os gestos
costumeiros: tomar café, barbear-se, folhear o jornal, fumar um cigarro e aspirar o perfume dos
jasmins – “os pequeninos prazeres”, “os pequeninos objetos” (Telles, 1984, p. 125). Saindo de
casa, porém, ele vai se reencontrar no mesmo jardim do pesadelo: “Um jardim inocente. E
inquietante como o jogo de quebra-cabeça que o pai gostava de jogar com ele: no caprichoso
desenho de um bosque estava o caçador escondido” (Telles, 1984, p. 125).
Estamos, como se vê, perto da atmosfera e do significado de “A caçada”: também aqui, temos
uma realidade sonhada e um sonho se tornando real, num vai-e-vem entre duas dimensões que,
na verdade, definem a estranha relação entre vida e morte. O protagonista de “A mão no ombro”
tenta fugir – tanto na situação onírica quanto no pesadelo que vai vivenciar depois de acordado –
desse lúgubre caçador, emblema e portador do Fim. Por isso ele procura se posicionar, ao mesmo
tempo, dentro e fora do quadro, até ser absorvido, todavia, pela cena sonhada/vivida:
Não era absurdo? Isso da realidade imitar o sonho num jogo onde a memória se
sujeitava ao planificado. [...] Sentiu o braço tombar, metálico, como era a alquimia? Se
não fosse o chumbo derretido que lhe atingira o peito, sairia rodopiando pela alameda,
descobri! Descobri. A alegria era quase insuportável: da primeira vez, escapei
acordando. Agora vou escapar dormindo. Não era simples? Recostou a cabeça no
espaldar do banco, mas não era sutil? Enganar a morte saindo pela porta do sono.
Preciso dormir, murmurou fechando os olhos. Por entre a sonolência verde-cinza viu
que retomava o sonho no ponto exato em que fora interrompido. A escada. Os passos.
Sentiu o ombro tocado de leve. Voltou-se (Telles, 1984, p. 128-129).
O tema da Morte e da sua relação misteriosa com aquilo que podemos ainda chamar de
sonho (embora seja, mais exatamente, uma projeção fantasmática daquilo que vai realmente
acontecer ou que já aconteceu), assume um papel importante na prosa de Lygia Fagundes
Telles, tanto assim que ele volta num outro conto angustiante como “A fuga”, incluído em
A estrutura da bolha de sabão – onde também a narrativa que dá o título ao volume é
atravessada e concluída por uma sensação de Fim iminente.
Em “A fuga”, de fato, o protagonista que tenta fugir “daquela COISA medonha que ficara lá
atrás” (Telles, 1991, p. 67), é, na verdade, alguém que já morreu e que, num devaneio
horrorizado e assustador, tenta se afastar do caixão onde jaz o seu corpo, até se encontrar
definitivamente “lá dentro”. A estrutura da bolha de sabão, de resto, é o primeiro livro publicado
depois da morte Paulo Emílio Salles Gomes e – sem querer, obviamente, criar um espelhamento
direto entre a experiência real da autora e a sua produção ficcional – podemos, todavia, atribuir
ao dado biográfico a responsabilidade de uma atenuação da ironia ou da distância com que
Lygia trata da assuntos relacionados com a Morte.
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Como se sabe, aliás, esta coletânea teve
uma gênese bastante peculiar, visto que se a ideia de coligir alguns contos dispersos nasceu em
1973, a escritora decidiu publicá-los apenas em 1978 com o título Filhos pródigos. Quando em
1986 ela recebeu a tradução francesa da obra, intitulada La structure de la bulle de savon, a autora
achou que esse nome (que correspondia àquele do último conto e que era, aliás, o título
originário do volume) era o mais adequado, acrescentando no breve prefácio da edição de 1991:
“Há em grego a palavra Ananke: o fado. O destino. Eis que o livro acabou reaparecendo com o
mesmo nome que lhe foi dado naquele ano remoto” (Telles, 1991, p. 7).
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O livro, de resto, é dedicado “A Paulo Emílio, que gostava das minhas ficções”.