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estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e562, 2019.
mais ainda, cruzando os braços. Limpou as mãos pegajosas no brocado da bata. Susteve a
respiração (Telles, 2009, p. 89).
Assim o conto acaba, deixando em suspenso, ou melhor, colocando no silêncio que vem
depois do fim da narrativa o acontecimento que deveria ser supostamente essencial: a agressão
violenta por parte do servidor, esperada e, talvez, merecida. O crime, nesse sentido, é
preparado mas fica fora do texto – assim como num outro conto da mesma coletânea, “Venha
ver o Pôr do Sol”, assistimos à preparação do delito de uma mulher por parte de um amante
abandonado, que vai a enclausurar numa capelinha dentro de um cemitério abandonado,
deixando-a, depois, aprisionada nesse cubículo: dela se ouvem, quando ele se afasta, apenas os
gritos “semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado”, para se tornarem, no fim, uivos
“abafados como se viessem das profundezas da terra” (Telles, 2009, p. 143-144).
A morte violenta contorna, enfim, a narrativa, mas não entra nela ou entra apenas como
ruído de fundo, porque aquilo que conta é a criação do suspense e a espera de uma
conclusão violenta; é a exibição das causas e a expectativa do crime, mais do que a
descrição dos efeitos e a realização do delito. Poderíamos, nesse sentido, evocar mais uma
vez o nome de Edgar Allan Poe (pense-se apenas em textos como “O Poço e o Pêndulo” ou
“O Barril de Amontillado”) como modelo desses contos de Lygia, mas diferentemente do
grande escritor americano, ela “joga” com a atmosfera de terror sem completar o gesto, se
subtraindo ao desfecho, ou melhor, deixando a possível conclusão ao leitor.
No espaço virtual, suspenso entre a escritura e a leitura, é que vamos encontrar, nessa
perspectiva, o sentido da poética de Lygia: sentido misterioso porque tudo aquilo que deveria
acontecer não acontece e, pelo contrário, pode acontecer aquilo que não é esperado. Se, de fato,
nos romances policiais (e também em “Os Assassinatos da Rue Morgue” do próprio Poe) o leitor é
compelido a descobrir uma verdade escondida, dobrando a leitura até desfazer o álibi, nas
narrativas da escritora a verdade fica, por contra, dobrada para sempre nesse lugar duvidoso que
vai da escrita à fruição, frustrando qualquer expectativa de chegar a uma solução do enigma.
Escreveu Ludwig Wittgenstein, nas suas Pesquisas filosóficas (Philosophische Untersuchungen), que
muitas vezes “nós esperamos isto e somos surpreendidos por aquilo” (Wittgenstein, 1967, § 326, p.
141, tradução nossa), decretando assim a não coincidência entre o esperado e a sua realização ou,
dito de outra forma, apontando para o caráter sempre surpreendente daquilo que acontece e que,
muitas vezes, se afasta dos nossos desejos ou das nossas expectativas. Sobre a espera e/ou a
esperança e sobre o efeito de surpresa em relação a elas, Paul Valéry tem, aliás, palavras ainda mais
esclarecedoras e contundentes: “Toda surpresa retroage e transforma em sonho ou quase-sonho
aquilo que era. A pessoa se torna como alguém que, logo depois de acordar, repercorre estupefato o
seu sonho, na fronteira” (Valery apud Bompiani, 2011, p. 11, tradução nossa).
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Como no déjà vu, então, assim na dialética falha entre a expectativa e a sua realização
aquilo que vige é um tempo parado ou invertido. E se em “A caçada” vai se tornar real aquilo
que já, hipoteticamente, aconteceu e que é, todavia, inesperado, em “Meia-noite em ponto em
Xangai” vai talvez acontecer, vai se tornar hipoteticamente real aquilo que é esperado. E o
álibi, em vez de ser por fim apagado, é assumido como núcleo indecifrável de uma verdade
que é sempre alhures em relação ao aqui do tempo ficcional:
– Que horas são?
– Meia-noite em ponto em Xangai.
– E em Londres? – perguntou ela (Telles, 2009, p. 86).
Pergunta que fica, evidentemente, sem resposta, já que é exatamente nesse álibi, nesse estar
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