estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e562, 2019.
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Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu – conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase
sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido
da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda, aspirara
aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? (Telles, 2009, p.
69).
A vista da cena representada na tapeçaria provoca, então, um moto, ao mesmo tempo, de
reconhecimento e de alheamento – efeito, aliás, típico do déjà vu, como foi magistralmente
sublinhado por Henri Bergson no seu ensaio “Le souvenir du présent et la fausse
reconnaissance”,
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retomado e ampliado, para uma reavaliação complexa e completa da nossa
relação com o tempo histórico, num importante volume de Paolo Virno (Il ricordo del presente)
em que esse fenômeno é vinculado à coexistência entre percepção e lembrança.
Do mesmo modo, o protagonista do conto adverte a cisão entre o “agora potencial” e o “agora
real” (Virno, 1999, p. 30), sem conseguir distinguir a cena remota que ele vê representada no
quadro e aquilo que está vivendo na atualidade ou que já viveu e de que, confusamente, tenta
se lembrar. Essa inquietante sensação o leva, de fato, a se interrogar sobre a complicada relação
entre presente e passado, entre experiência e memória: “Levantou a gola do paletó. Era real esse
frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? „Que loucura!... E não estou louco‟, concluiu num
sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. „Mas não estou louco‟” (Telles, 2009, p. 71).
Louco não, mas certamente obcecado pela imagem olhada e pelo seu espelhar-se nela, o
homem volta mais uma vez para a loja, onde o desenho da tapeçaria se torna, no seu entender,
sempre mais nítido, obrigando-o a se interrogar sobre a sua relação com ele:
O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse
caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando entre as árvores? [...] E
se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas antigas tapeçarias eram
reproduções de quadros, pois não eram? [...]. E se fosse um simples espectador casual,
desses que olham e passam? Não era uma hipótese? (Telles, 2009, p. 69-70).
Arrastado por essas dúvidas, o protagonista se aproxima sempre mais da cena representada
até ser engolido por ela e, ao mesmo tempo, até se apoderar da paisagem: a tapeçaria o atrai
como uma memória sepultada e ele a assume dentro de si, no seu presente, até perceber que ele
entrou na cena da caçada. É uma espécie de êxtase que se desenrola num tempo estático:
Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque,
os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado.
Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de
uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não
importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as
árvores, caçando ou sendo caçado (Telles, 2009, p. 72).
Esse instante congelado em que não existe ainda uma distinção clara entre a realidade e a sua
representação, entre passado e presente, entre sujeito e objeto (como já acontecia, justamente, em
“Objetos”), é exatamente o momento suspenso produzido pelo déjà vu. Nas palavras de Paolo Virno:
Se tudo já aconteceu, nada vale a pena. Qualquer ação é uma réplica, ou melhor, uma citação
extraída de um roteiro inquestionável. Mas o que nos prescreve, em concreto, esse roteiro?
Quais são os atos que estamos sempre a ponto de repetir? Como se articula o imperioso
passado a que devemos nos conformar na nossa existência de epígonos? Impossível de
responder. [...] Somos obrigados a reproduzir algo, mas algo indefinido, um não-sei-que cujo
conteúdo apuramos só depois de o ter reproduzido (Virno, 1999, p. 30, tradução nossa).
Eis então como a reflexão sobre o valor histórico do presente lembrado se cruza com o gesto
fundador do artista, delimitando a sua capacidade de habitar, ao mesmo tempo, a dimensão do
“atual” (da prática) e do “intempestivo” (da ficção), numa ambiguidade sem saída. Se
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O estudo de Bergson apareceu pela primeira vez na Revue philosophique em dezembro de 1905. Ele o incluiu, depois, no seu
L’energie spirituelle (Bergson, 1919).
Amor, humor e terror na ficção de Lygia Fagundes Telles
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