estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e562, 2019.
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Essa função simbólica, de resto, aparece desde a pré-história do gênero romanesco. Em
Lancelot ou le chevalier de la charrette, com efeito, escrito por Chrétien de Troyes entre 1176 e 1181,
conta-se o caso de Lancelote perdido de amores por Genebra que, em sua procura desvairada
pela rainha que tinha sido raptada, aceita subir no carro conduzido por um anão:
Et voit un nain sor les limons,
Qui tenoit come charretons
Une longue verge an sa main.
Et li chevaliers dit au nain:
“Nains, fet il, por Deu, car me di
Se tu as veü par ici
Passer ma dame la reïne.”
Li nains cuiverz de pute orine
Ne l‟en vost noveles conter,
Einz li dist: “Se tu viax monter
Sor la charrete que je main,
Savoir porras jusqu‟a demain
Que la reïne est devenue” (Chrétien de Troyes, 1969, versos 347-359, p. 11-12)
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A humilhante decisão do nobre cavaleiro de subir no carro parece uma capitulação – sempre
em nome do amor cortês, levado, porém, aqui, às suas consequências extremas, i.e., levado até à
aceitação da “desmesura” e da infâmia –, ao sentido de realidade que o feio anão
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representa, em
toda a sua sólida e desprezível evidência, em toda a sua pragmática e vil peremptoriedade. Nessa
perspectiva, poderíamos concluir, de forma provisória, que o acesso ao ideal ou ao fabuloso deve
necessariamente passar pela aceitação do seu contrário: de tudo aquilo que se apresenta marcado
pela solidez da pedra, do osso, da baixura e da baixeza em todos os sentidos. A proximidade ao
chão determina, em suma, a capacidade do anão de fazer passar (ou de levar além, no sentido
originário do verbo metaphorein) uma verdade “rasteira” pelas malhas da ficção, dando – através
da metáfora, justamente – um sentido “concreto” e racional àquilo que se apresenta como onírico
ou aporético (“barrado” ou “sem passagem”, no seu significado ainda etimológico).
O anão vai se tornar, de fato, na obra de Lygia Fagundes Telles, um ser em miniatura em que
se miniaturiza a essência do real, como se mostra claramente no conto “Objetos” abrindo Antes
do baile verde (de 1970). Num diálogo aparentemente tresloucado entre um homem e uma
mulher, aquilo de que o personagem masculino tenta convencer a sua esposa é a necessidade de
“as coisas” serem olhadas, manuseadas, usadas para se tornarem vivas “como nós, muito mais
importantes do que nós, porque continuam” (Telles, 2009, p. 12). Prosseguindo na conversa, os
dois relembram a visita a uma loja de antiquário onde compraram uma adaga árabe que o
marido considera inútil – “para que serve uma adaga fora do peito?” (Telles, 2009, p. 13),
enumerando depois os objetos expostos na vitrina: uma bandeja, um lustre, uma gravura
intitulada Funerais do Amor, “triste demais”, na opinião da mulher. O homem responde, então,
que tinha uma “coisa” mais triste ainda: um anão:
– Tinha um anão na gravura?
– Não, ele não estava na gravura, estava perto.
– Mas...era um anão de jardim?
– Não, era um anão de verdade.
– Tinha um anão na loja?
– Tinha. Estava morto, um anão morto, de smoking, o caixão estava na vitrina. Luvas
brancas e sapatinhos de fivela. Tudo nele era brilhante, novo, só as rosas estavam velhas.
Não deviam ter posto rosas assim velhas.
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“E vê um anão sobre os varais que tinha na mão, enquanto carroceiro, uma longa vara. E o cavaleiro [Lancelote] diz ao anão:
„Anão – ele falou – em nome de Deus, diz-me se viste passar por aqui a minha senhora, a rainha‟. O vil anão, de desprezível origem,
não quis lhe dar notícia alguma, mas lhe respondeu: „Se queres subir na carruagem que eu dirijo, vais poder saber, antes de amanhã,
o que foi feito da rainha‟” (tradução nossa).
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“Boçus et rechigniez” – “corcunda e carrancudo” (Troyes, 1969, versos 5149, p. 157).
Amor, humor e terror na ficção de Lygia Fagundes Telles
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