10
INTRODUÇÃO
Iniciava mais uma aula comum na academia. Todos, ocupamos nossos lugares na sala,
em “formação”, conforme manda o professor Kaveira. Eu era iniciante e tudo ainda era uma
grande novidade. Colocaram um CD, para treinarmos, o berimbau tocou e uma voz forte falou:
“Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (...)”. Seguiu-se a leitura do decreto
n.º 847, de 1890, acerca da criminalização da capoeira na 1ª República, sobre o qual nunca tinha
ouvido falar. Depois disso, o “Iêê” veio intenso, indicando o início da capoeira e então aquela
voz, carregada de emoção e energia, cantou:
Dona Isabel que história é essa // dona Isabel que história é essa, oiá iá // de
ter feito abolição // de ser princesa boazinha que libertou a escravidão // eu tô
cansado de conversa, tô cansado de ilusão // abolição se fez com sangue, que
inundava este país // que o negro transformou em luta // cansado de ser infeliz.
// Abolição se fez bem antes // e ainda há por se fazer agora // com a verdade
da favela // e não com a mentira da escola. // Dona Isabel chegou a hora // de
se acabar com essa maldade // de se ensinar aos nossos filhos // o quanto custa
a liberdade. // Viva Zumbi nosso rei negro // que fez-se herói lá em Palmares
// viva a cultura desse povo // a liberdade verdadeira // que já corria nos
quilombos // e já jogava capoeira // Iê viva Zumbi // Iê viva Zumbi, Camará
(coro) // Iê rei de Palmares // Iê rei de Palmares, Camará (coro) // Iê libertador
// Iê libertador, Camará (coro) // Iê viva meu Mestre // Iê viva meu Mestre,
Camará (coro) // Iê quem me ensinou // Iê quem me ensinou, Camará (coro) //
Iê a capoeira // Iê a capoeira, Camará (coro)
1
O CD continuou a tocar músicas dedicadas a comunidades no Rio Janeiro. Uma delas
dizia que o negro era forte, da periferia, era escravo, assim como o avô; outra afirmava que o
negro era um cidadão considerado. Uma mais - a canção “Dor, dor, dor” lamentava as dores
negras, dizendo que “o sangue jorra do chicote do feitor” e “da caneta do doutor”, concluindo:
“dona Isabel, sua lei não adiantou”.
Tudo aquilo me impressionou muito. Meu professor me falou que o nome do CD era
“Liberdade”, que a primeira canção se chamava “Dona Isabel” e que seu compositor era o
Mestre Toni Vargas, um dos mestres do Grupo Senzala, no qual eu havia entrado há poucos
meses.
Desde aquela aula, até hoje, são passados cinco anos e, ao longo desse tempo, ouvi
muitas vezes a ladainha “Dona Isabel” e o lamento “Dor, dor, dor”, nas muitas rodas e eventos
de capoeira de que participei. Foi a partir disso que surgiu o interesse por estudar temas
relacionados à história do negro no Brasil. Primeiramente, ainda na graduação, dediquei-me ao
tema da Abolição, em uma pesquisa realizada no âmbito do PET – História, sob a orientação
1
Música
retirada
do
CD
Liberdade,
do
Mestre
Toni
Vargas,
localizada
em:
. Acesso em 16 de nov. 2017.
11
da Prof.ª Dr.ª Joseli M. N. Mendonça. Nesse trabalho pesquisei sociedades abolicionistas,
especialmente no Paraná.
Nesses anos, também pude conhecer várias outras canções da capoeira, que tratavam
sobre o fim da escravidão. Por isso, para a monografia, decidimos tomá-las como fontes, sobre
as quais tínhamos o objetivo de investigar o que diziam acerca desse tema. Para isso,
precisávamos estudar de que forma esse assunto já havia sido abordado por autores, entre eles
historiadores, além de compreender como se deu a construção da capoeira contemporânea.
Sendo assim, no primeiro capítulo, estudamos diversas interpretações sobre a abolição,
feitas ao longo da história. Nosso trabalho começou pelos autores Joaquim Nabuco
2
e Evaristo
de Moraes
3
, em seguida contemplamos historiadores, como Octavio Ianni
4
, Emília V. da Costa
5
,
Clóvis Moura
6
, Lana L. da Gama Lima
7
, Célia M. M. de Azevedo
8
, Sidney Chalhoub
9
e Joseli
M. N. Mendonça
10
. Através dessas leituras, compreendemos que o fim da escravidão no Brasil
foi analisado por inúmeras vertentes, as quais, de maneira geral, destacaram o aspecto
legislativo, as questões econômicas que estavam em voga, as pressões escravas, advindas das
revoltas e de processos judiciais travados contra os senhores de escravos. Assim, alcançamos o
objetivo de entender de que forma a abolição foi interpretada.
No segundo capítulo, nos dedicamos a pesquisar sobre a história da capoeira, pois seria
importante para entendermos como foi formada a capoeira contemporânea. Por isso, buscamos
em diversos referenciais teóricos
111213
, os aspectos que a caracterizaram ao longo tempo, desde
2
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Coleção Grandes nomes do pensamento brasileiro da Folha de S. Paulo.
São Paulo: Publifolha, 2000
3
MORAES, Evaristo de. A campanha abolicionista: 1879 – 1888. 2ª edição. Brasília, UnB, 1986.
4
IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo: apogeu e crise da escravatura no Brasil meridional. São Paulo:
Difusão Europeia do Livro. 1962.
5
COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 3º edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, especialmente
Capítulo IV: Transformações na economia cafeeira. pp. 181-226.
6
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. Quilombos, insurreições, guerrilhas. 2ª edição. Editora Conquista: 1972.
7
LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia Negra e Abolicionismo. Editora Achiamé. Rio de Janeiro: 1981.
8
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
9
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
10
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição
no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999. Coleção
Várias Histórias.
11
TORRES, Felipe C. Capítulo 14: “Reflexões sobre a capoeira e o espaço público urbano em sua trajetória
histórica.” In: PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões; FIGUEIREDO, Francine Simplício; FILHO, Paulo
Andrade Magalhães; MACHADO, Sara Abreu da Mata (Org.). Capoeira em múltiplos olhares: estudos e
pesquisas em jogo. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. Coleção UNIAFRO, 13.
12
CONDURU, Guilherme Frazão. As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira.
Revista Textos do Brasil. Edição 14º - Capoeira. Ministério das Relações Exteriores.
13
PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. Culturas Circulares. A Formação Histórica da Capoeira
Contemporânea no Rio de Janeiro. Editora Progressiva, Curitiba, 2010
12
seus primeiros registros (no fim do século XVIII e início do XIX), passando pelo período
imperial e republicano. Desta maneira, concluímos que a capoeira já assumiu muitas formas:
começou como uma luta, um jogo, uma brincadeira dos escravos, provavelmente urbanos,
testemunhadas em depoimentos das milícias e por retratos de cronistas viajantes.
Posteriormente, esses capoeiras se aproximaram da política institucional, estabelecendo
vínculos partidários, passaram a se organizar em grupos, que atuavam em eventos públicos e se
posicionavam politicamente (por exemplo, a favor da monarquia, no final do Império). Essas
ações dos capoeiristas tiveram um custo, que foi a criminalização da prática, durante a 1ª
República, quando muitos foram apreendidos, sob a justificativa de causarem desordens e
tumultos à ordem pública. De algo proibido, a partir da década de 1930 ela passou a ser um
símbolo da cultura nacional, o esporte genuinamente brasileiro, carregado do passado da
miscigenação do branco com o africano. Mestre Bimba e Pastinha conduziram esse processo,
fundando, em suas academias, os estilos Regional e Angola, respectivamente, tornando-se
“patronos” da capoeira. E, a partir da década de 1970, a capoeira ganha um novo sentido, uma
cultura negra, de resistência, herdeira do passado da escravidão, contribuindo, assim, para a
formação da identidade negra. Portanto, entender esses caminhos foi importante para
identificarmos quais aspectos foram mantidos pela capoeira atual, que relações ela estabelece
com o passado e como isso colabora para a construção de memórias, sendo que, algumas delas,
pretendíamos identificar em nossas fontes, a fim de reconhecer quais discursos a capoeira tem
sobre a abolição.
Por fim, baseado no que havíamos apresentado, pudemos analisar nossas fontes, as 15
canções cujas letras tratam do tema da Abolição no Brasil. Conhecemos algumas no convívio
com a capoeira e outras com pesquisas na internet. A partir delas, notamos diferentes temas
abordados, por exemplo a escravidão, sendo que muitas mencionam a África e as condições de
vida dos escravizados, o trabalho nas lavouras e as violências sofridas. Com relação ao fim da
escravidão, há divergências, pois muitas defendem a princesa Isabel, acreditam que, através da
Lei Áurea, os negros puderam gozar da liberdade. Enquanto outras tecem severas críticas à
Isabel (a qual, muitas chamam por “dona” e não “princesa”), afirmam que a liberdade não foi
feita pela Lei e algumas nem sequer admitem que os negros são livres, pois associam à
discriminação e marginalização, que ainda persistem na sociedade.
Procuramos interpretar essas canções, considerando o contexto em que elas se inserem,
ou seja, os rituais da roda; as referências à ancestralidade; as memórias que estão em disputa; o
efeito que elas causam nos capoeiristas; as relações com a história e a constituição de uma
13
identidade negra, por meio delas, que valoriza os negros e denuncia as mazelas sociais sofridas
por eles. Nesse sentido tivemos alguns referenciais teóricos importantes, como o autor Petrônio
Domingues
14
e, principalmente, as autoras Simone P. Vassalo
15
e Flávia Diniz
16
. Além disso, a
metodologia adotada foi baseada no historiador Marcos Napolitano
17
, em seu estudo sobre
música, pois ele estabelece conceitos relevantes para esse tipo de pesquisa histórico-cultural,
os quais, na medida do possível, tentamos empregar ao longo do nosso trabalho.
Sendo assim, nossas fontes nos levaram para versos como esses: “salve, salve, salve a
princesa Isabel no mundo inteiro // com a pena e o papel // acabou com o cativeiro // (...) não
existem mais escravos // hoje quem joga é o patrão”
18
. Ou oposto disso: “a história nos engana
// diz tudo pelo contrário // até diz que abolição // aconteceu no mês de maio // a prova dessa
mentira // é que da miséria eu não saio”
19
. E muitas que compartilhavam da seguinte mensagem:
“e hoje em dia o negro, quando joga capoeira // sente orgulho da raça, raça afro-brasileira // traz
na cor a história de uma guerra de verdade // do negro clamando paz, lutando por liberdade”
20
.
As canções também nos permitiram compreender o valor e os significados que a capoeira
carrega, constituindo narrativas e memórias próprias, compartilhadas entre os capoeiristas,
através de músicas, interpretadas com sinceridade, emoção e energia (conhecida como “axé”,
pelos capoeiristas), valorizando ainda mais a história e a cultura negra.
Assim, esperamos que esse trabalho contribua no conhecimento sobre a abolição, por
um outro viés, pois as canções colaboram para entendermos que a história se faz com diversos
instrumentos. Reconhecer isso é importante para valorizarmos essa cultura negra, a capoeira,
como protagonista na escrita de sua história.
14
DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Revista Tempo
[online]. Universidade Federal Fluminense, vol.12, nº 23, 2007.
15
VASSALO, Simone Pondé. “Capoeiras e intelectuais: a construção coletiva da capoeira "autêntica". Estudos
Históricos. Rio de Janeiro, nº 32, 2003.
16
DINIZ, Flávia. Trânsito musical e identidade na capoeira angola. I Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em
Música. XV Colóquio do Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO. Rio de Janeiro, novembro de 2010.
Pp. 892 – 902.
17
NAPOLITANO, Marcos. História e Música – história cultural da música popular. 3ª edição. Belo Horizonte:
Autêntica, 2016, especialmente o capítulo III, “Para uma história cultural da música popular”. pp. 77 – 111.
18
Localizada em: . Acesso em 16 de
nov. 2017.
19
“Rei Zumbi”, feita pelo Mestre Moraes, do grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP), localizada em:
.
Acesso em 16 de nov. 2017.
20
“Negralização”, reproduzida pelo grupo Cordão de Ouro. Não conseguimos identificar a data dessa composição,
localizada em: . Acesso em 16 de nov. 2017.
14
Compartilhe com seus amigos: |