Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Embora
avessos à tese de Freyre, esses estudiosos – de formação marxista – preferiram
analisar a questão pelo lado da “coisificação” do escravo,
quase ignorando as
rebeliões da senzala. O próprio Cardoso chegou a escrever que os escravos
foram “testemunhos mudos de uma história para a qual não existem a não ser
como (…) instrumento passivo”.
Sabe-se atualmente que a resistência dos escravos foi feroz e constante:
milhares de negros lutaram de todas as formas contra os horrores que o destino
lhes reservara. A fuga, solitária ou coletiva, não era a única forma de rebelião:
houve incontáveis casos de escravos que quebraram ferramentas, incendiaram
senzalas, dispersaram os rebanhos ou atacaram seus feitores. Muitos outros
optaram pelo suicídio (em geral pela ingestão de terra), ou então se deixaram
acometer pelo “banzo”, o torpor mortal que levava à morte por inanição.
O certo
é que, onde houve escravidão, houve resistência.
Evidentemente, a forma mais comum de protesto contra a escravidão era a
fuga. Apesar do rigor das punições (que incluíam a marcação com ferro em
brasa, o açoitamento e até o corte do tendão de aquiles), milhares de negros
tentaram escapar da senzala – e muitos conseguiram. Embora grande parte fosse
recapturada pelos capitães do mato, terríveis caçadores de homens quase
infalíveis (negros na maioria), sempre houve aqueles que, “estimando mais a
liberdade entre as feras do que a sujeição entre os homens”, lograram se meter
na mata e lá fundar seus “mocambos” e “quilombos” (respectivamente
“esconderijo” e “povoação”, em banto).
Quantos foram os quilombos e quantos negros neles viveram é algo
impossível de calcular. Em 1930, o
Guia Postal do Brasil registrava, segundo
um pesquisador, 168 agências cujo nome derivava das palavras quilombo ou
mocambo. Eles se espalhavam da Amazônia ao Rio Grande do Sul, e alguns
chegaram a ter cerca de dez mil habitantes, como o quilombo do Ambrósio, em
Minas Gerais. Nessas povoações, não viviam apenas
negros de todos os grupos
étnicos, falando várias línguas diferentes: nos quilombos também se podia
encontrar indígenas e brancos desajustados ou fora da lei. Embora as autoridades
e os senhores de escravos constantemente se unissem para articular expedições
repressivas, enviadas a todo e qualquer quilombo, onde quer que eles se
encontrassem, muitos desses núcleos resistiram por anos a fio. O maior e mais
P
importante deles – Palmares, o berço de Zumbi – foi capaz de sobreviver por
quase um século.
O
QUILOMBO DOS PALMARES
almares foi o mais significativo e o mais simbólico dos quilombos não
apenas do Brasil mas das Américas. Em nenhum outro lugar a resistência
dos escravos fugidos foi tão longa, bem-sucedida e organizada como nos doze
mocambos erguidos na serra da Barriga, no sertão de Alagoas, a 90 quilômetros
de Maceió.
Ainda assim, sua história permanece envolta em penumbra e mitificações e
repleta de lacunas. Seu próprio líder, Zumbi, virou figura mais mitológica do que
histórica.
Desde 1991, porém, um programa de escavações arqueológicas – financiado
por entidades internacionais, entre as quais a norte-americana
National
Geographic – está sendo desenvolvido
no mocambo do Macaco, a capital dos
Palmares, e poderá elucidar muito um episódio que já foi interpretado sob
diversos pontos de vista.
Ironicamente, Palmares entrou para a história pelas mãos de um rico senhor
de engenho, Sebastião da Rocha Pita, que, em 1724, em sua
História da América
portuguesa, celebrou “o fim tão útil como glorioso (
da) guerra que fizemos aos
negros dos Palmares”. As poucas fontes originais relatando a resistência épica e
a trágica derrocada do quilombo foram redigidas pelas mesmas mãos que o
destruíram. Nenhum combatente deixou seu relato.
A partir da década de 1950, a história dos Palmares seria lida por uma visão
“de esquerda”. Embora historiadores como Edison Carneiro e Décio Freitas
tenham publicado documentos inéditos, o velho quilombo de Zumbi continuou
sendo utilizado como símbolo e metáfora. A realidade – menos emblemática e
glamourosa, mais efetiva e complexa – começa
agora a emergir das covas
abertas na terra. Três séculos após sua destruição, Palmares pode estar
renascendo de suas próprias cinzas.
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