Veronica. Eu odiava aquela merda.
— Não é merda nenhuma — ele reclamava.
Já eu gostava de Batman, Homem-Aranha e Hulk.
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— Sombrio demais — Dante disse.
— Falou o cara que gosta de Coração das trevas, do Conrad.
— É diferente — ele rebateu. — Conrad escreveu literatura.
Eu sempre defendia que histórias em quadrinhos também eram
literatura. Só que literatura era coisa séria para alguém como Dante.
Não me lembro de ter ganhado uma discussão com ele. Ele argu-
mentava melhor. E lia melhor. Li o livro do Conrad por causa dele.
Quando terminei, disse que tinha odiado.
— Apesar de que é verdade. — comentei. — O mundo é um
lugar sombrio. Nisso Conrad tem razão.
— Talvez o seu mundo, Ari. O meu não.
— Pois é — eu disse.
— Pois é — ele disse.
A verdade é que eu tinha mentido para Dante. Amei o livro.
Achei a coisa mais linda que já tinha lido. Quando meu pai viu o
que eu estava lendo, me contou que era um de seus livros prediletos.
Tive vontade de perguntar se ele tinha lido antes ou depois do Vietnã.
Mas não adiantava fazer perguntas ao meu pai. Ele nunca respondia.
Assumi que Dante lia porque gostava. Já eu lia porque não tinha
nada melhor para fazer. Ele analisava as coisas. Eu apenas lia. Acho
que precisava procurar mais palavras no dicionário do que ele.
Eu era mais escuro do que ele. E não falo apenas da cor da pele.
Ele disse uma vez que eu tinha uma visão trágica da vida.
— É por isso que você gosta do Homem-Aranha.
— É que eu sou muito mexicano. O povo mexicano é trágico.
— Pode ser — ele falou.
— Você é o americano otimista.
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— Isso é uma ofensa?
— Talvez — respondi.
Rimos. Sempre ríamos.
Dante e eu não éramos parecidos. Mas tínhamos algumas coisas
em comum. Para começar, nenhum de nós tinha autorização para
assistir
tv
durante o dia. Nossos pais não gostavam do que a
tv
fazia
com a cabeça dos garotos. Ambos crescemos com discursos mais ou
menos assim: “Você é um menino! Saia daí e vá fazer alguma coisa!
Tem um mundo inteiro lá fora à sua espera…”.
Dante e eu fomos os últimos garotos dos Estados Unidos a cres-
cer sem
tv
. Um dia, ele me perguntou:
— Você acha que nossos pais estão certos? Que tem um mundo
inteiro lá fora à nossa espera?
— Duvido — foi minha resposta.
Ele riu.
Então, tive uma ideia.
— Vamos pegar um ônibus e ver o que tem lá fora.
Dante sorriu. Nós dois adorávamos andar de ônibus. Às vezes,
passávamos a tarde inteira fazendo isso.
— Gente rica não anda de ônibus — falei para Dante.
— É por isso que a gente gosta.
— Talvez — eu disse. — A gente é pobre?
— Não — ele respondeu, abrindo um sorriso. — Mas, se fugísse-
mos de casa, nós dois seríamos pobres.
Achei a ideia muito instigante.
— Você teria coragem? — questionei. — Teria coragem de fugir
de casa?
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— Não.
— Por que não?
— Quer ouvir um segredo?
— Claro.
— Sou louco pela minha mãe e pelo meu pai.
Abri um sorriso sincero. Nunca tinha ouvido alguém falar
assim dos pais. Quer dizer, ninguém era louco pelos pais. Exceto
Dante.
Então ele cochichou no meu ouvido:
— Acho que aquela mulher dois bancos à frente está tendo um
caso.
— Como você sabe? — cochichei de volta.
— Ela tirou a aliança assim que entrou no ônibus.
Concordei com a cabeça e sorri.
Nós inventávamos histórias sobre os outros passageiros.
Quem sabe eles não imaginavam histórias para nós.
Nunca fui muito próximo de ninguém. Eu era um solitário.
Tinha jogado basquete, beisebol e passado pelos lobinhos e ten-
tado ser escoteiro. Sempre mantendo distância dos outros garotos.
Nunca, jamais me sentira parte daquele universo.
Garotos. Observava-os. Estudava-os.
No fim das contas, sempre achei a maioria dos caras desinteres-
sante. Na verdade, os desprezava.
Talvez me sentisse um pouco superior. Não sei se “superior”
era a palavra. Só não sabia como falar com eles, como ser eu
mesmo perto deles. Andar com outros caras não me dava a sensa-
ção de ser mais inteligente. Andar com outros caras me dava a
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sensação de ser burro e deslocado. Era como se todos fizessem
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