I.4. CONVERGÊNCIAS, DIVERGÊNCIAS E ARTICULA-ÇÕES
Os resultados que apresentamos nas três primeiras sessões deste
capítulo evidenciam uma série de convergências, algumas poucas divergências
e, sobretudo, propiciam algumas articulações que passaremos a discutir.
É notável a convergência e constância dos resultados com relação ao
“espectro” de noções, ou modelos mentais de Terra, sobretudo considerando-se
a diversidade de faixa etária e culturas nas quais se efetuaram os diversos
levantamentos aqui relatados. A composição de todos estes resultados nos
fornece um panorama bastante completo e detalhado acerca das diversas
possibilidades de representação da Terra nas crianças e jovens. A
impressionante regularidade destes modelos parece-nos ter um explicação que
é referida direta ou indiretamente em quase todos os trabalhos e que, em
termos da interpretação que adotamos na análise dos resultados que obtivemos
na cidade de S. Paulo, pode ser expressa da seguinte maneira:
A representação realista ingênua da Terra é essencialmente a mesma
em todos os países, pois todos nós que vivemos em sua superfície
compartilhamos praticamente do mesmo ponto de vista, do mesmo tipo de
percepção imediata: a Terra nos parece plana, coberta por um céu que parece
formar uma camada azul sobre o chão onde vivemos e a direção “para cima” ou
“para baixo” nos parece única e absoluta. Usando a expressão de Vosniadou e
Brewer (1992), diríamos que as “pressuposições” são as mesmas para todos.
Por outro lado, a representação conceitual da Terra, fornecida pela
cultura, marcada pela ciência ocidental, também é idêntica para todos os povos
civilizados.
Portanto os dois extremos do “espectro” nocional são idênticos e como as
soluções intermediárias não passam de tentativas de conciliação lógica entre
estes extremos, a quantidade de alternativas que permitem soluções razoáveis
a este dilema é limitada. Aí temos o aparecimento dos modelos da Terra dupla,
da Terra oca, da esfera achatada, ou da Terra esférica habitada só em seu
topo.
115
Com quase todos os demais elementos que compõem a noção geral de
universo: os astros, o céu, os modelos tridimensionais de universo, processos
como o ciclo dia/noite, as fases da Lua e as estações do ano, ocorre
exatamente o mesmo que descrevemos acima para o caso da Terra: as
representações oscilam entre o extremo realista ingênuo e o conceitual, dando
origem a diversos modelos intermediários que correspondem a uma espécie de
mistura e busca de conciliação entre os dois extremos, nos quais se percebem
traços de ambos.
O conjunto dos resultados apresentados nos artigos internacionais
confirma, assim, o fato que havíamos apontado em nosso levantamento, de que
há uma forte interação entre conceitos espontâneos/realistas ingênuos e
científicos/conceituais. Novamente podemos perceber que parece ocorrer um
processo de desenvolvimento dos primeiros em direção a níveis mais abstratos
e gerais, e, dos segundos, em direção ao concreto e particular, sendo ambos os
processos complementares e inter-relacionados, conforme propõe Vygotsky
48
.
O “levantamento de pressuposições” referido por Vosniadou e Brewer, por
exemplo, pode ser interpretado em termos de um desenvolvimento do conceito
espontâneo em direção a uma maior generalidade e abstração, e,
reciprocamente, do conceito científico a uma maior concretude e especificidade.
Uma articulação fundamental que já durante a própria exposição dos
resultados foi por nós exaustivamente utilizada, servindo de fio condutor de
nossa análise, foi a utilização do resultado obtido por Piaget com relação à
questão da realidade, mostrando que a criança jovem vive num estado de
consciência em que ainda não há diferenciação entre o interno e o externo, em
que sua mente se move num único plano, sem distinção entre seu próprio eu e
o mundo exterior. A conseqüência deste estado é o realismo ingênuo, no qual a
criança toma seu ponto de vista particular como único e absoluto. O que
fizemos foi aplicar esta idéia à descrição das concepções infantis com relação
ao universo, considerando que a criança no seu contato com o mundo toma o
seu ponto de vista particular, topocêntrico como verdadeiro e absoluto,
formando assim concepções realistas ingênuas acerca do universo.
48
VYGOTSKY, 1996.
116
Outra articulação importante entre os resultados de Piaget e os nossos,
bem como os apresentados nos artigos, refere-se ao espaço. Há pelo menos
duas
questões
espaciais
fortemente
imbricadas
na
formação
das
representações do universo: primeiramente a questão de que as crianças mais
jovens concebem o espaço não de uma maneira euclidiana, mas topológica, de
modo que seus modelos mentais de universo quase não contemplam questões
como as distâncias e proporções entre os astros, mas apenas relações de
vizinhança e ordem. Um exemplo extremo disso parece ser o do universo
“coluna” concebido por Gab (veja p.66 e fig. 5)
−
um universo praticamente
unidimensional, em que a única estrutura presente parece ser a de uma
seqüência, ou ordem dos astros, a partir da Terra, para o alto. De fato, na maior
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