Figura 2: Desenho de Thi (14 anos) representando a Terra.
Figura 3: Casa orientada segundo uma direção vertical absoluta.
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5. A Terra Esférica: segundo essa concepção a Terra tem a forma
esférica, é cercada de espaço por todos os lados, as pessoas vivem em sua
superfície e a vertical é relativa, apontando sempre na direção do centro da
Terra. É a concepção mais próxima do modelo científico, culturalmente aceito
de Terra, ou seja, mais próxima do que denominamos o pólo conceitual, fruto de
uma reflexão racional sobre os dados observacionais, cujo resultado final é um
modelo de Terra que é, aparentemente, diferente, até mesmo oposto, ao que
nos revelam os sentidos.
Lau (10 anos) é um exemplo do uso desta concepção: logo no início da
entrevista, quando é pedido que ela faça um desenho da Terra
13
ela logo
pergunta: “qual Terra?”, e diz que existem duas “Terras”: “a que a gente planta”
e “o nosso planeta”. O seu desenho do planeta Terra é um círculo azul com
“continentes” brancos. Quando é pedido que ela faça a Terra com massa de
modelar, consistentemente com a sua representação desenhada, Lau constrói
uma bolinha azul e nela gruda “continentes” brancos. Quando a entrega a
entrevistadora, esta pergunta:
E: Prontinho? Isso aqui é a Terra? Que Terra é essa?
LAU: Nosso planeta.
Parece-nos muito significativa a maneira como Lau repetidamente se
refere à Terra como “o nosso planeta”, isso parece indicar que ela não só
concebe a Terra como um planeta, mas, mais ainda, como sendo de fato o
nosso planeta, ou seja, o lugar onde vivemos. Podemos comparar essa
resposta com, por exemplo, a de Cris, que, como já citamos anteriormente,
apresenta a noção de uma Terra dupla e se refere à Terra representada por
uma bola
−
que para ela não é o lugar onde moramos
−
como sendo apenas “o
planeta Terra”, nunca o “nosso planeta”. Cris separa-se do “planeta Terra”,
enquanto Lau o considera seu.
Na 3
a
etapa da entrevista, quando é pedido a Lau que escolha na
estante alguma coisa que seja mais parecida com a Terra, segundo o que ela
13
Na entrevista de Lau, excepcionalmente, a ordem da 1
a
e 2
a
etapa foram invertidas: primeiro
se pediu a ela que realizasse os desenhos e só depois que fizesse os modelos de Terra, Lua, Sol
e estrela com massa de modelar.
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imagina. Lau escolhe uma bola inteiramente pintada de azul. A entrevistadora
pergunta:
E: Eu queria saber onde que a gente vive aí [referindo-se à Terra que Lau
escolheu].
LAU: A gente vive na terra, mas aqui não tem terra. [Neste momento,
como ficará evidente pelas suas respostas posteriores, Lau está usando o termo
“terra” para se referir ao “elemento” terra, ou seja, aos continentes, em oposição
à água dos mares e oceanos.]
E: Onde que tem terra?
LAU: Aqui não tem. [Pois a bola está toda pintada de azul, que é a cor da
água dos oceanos.]
E: Não? E aí, como que a gente vive? [A entrevistadora, até aqui, ainda
não entendeu de que “terra” Lau está falando.]
LAU: Aqui não tem terra, aqui só tem mar…
E: Aí só tem mar?
LAU: É.
E: O mar fica aqui em torno de tudo, como é que é isso?
LAU: Isso daí precisa fazer a terra.
E: Precisa fazer? Como é que faz pra fazer a terra?
LAU: Desenhar a terra…
No trecho anterior Lau dá a entender que a representação de Terra em
que ela está pensando é semelhante a de um globo terrestre, com os oceanos
em azul e porções de terra (os continentes) indicadas em outra cor, na
superfície do globo, que é onde as pessoas vivem. A entrevistadora pede então
a Lau, que desenhe a terra de que ela acha que está faltando. Lau apanha uma
caneta e desenha o contorno de uma porção de terra sobre a bola azul:
E: Hum…, então a gente fica aí neste pedaço…
LAU: É.
E: É isso? Nessa partezinha aqui [apontando para o desenho que Lau
acabou de fazer].
LAU: [Faz que sim com a cabeça.]
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E: Tá. Agora quero que você me coloque… faz de conta que aqui é a sua
casa [apanha a casinha de brinquedo e mostra a Lau], quero que você coloque
a sua casa aí na Terra.
LAU: [Coloca da maneira correta, com a base da casa encostada na
superfície da Terra, num ponto da região onde ela indicou, através de seu
desenho, que existia terra, próximo ao “equador” do planeta]
Um pouco depois a entrevistadora pergunta sobre como ficaria a casa no
Japão:
E: E o japonês? Onde que ele fica?
LAU: Aqui. [Coloca a casinha um pouco acima do equador, no lado
oposto ao que ela havia indicado que ficava a sua casa, novamente da maneira
correta, com a base da casa tocando a superfície da Terra, de maneira coerente
com a concepção de uma vertical relativa, que aponta na direção do centro da
Terra.]
Uma variante muito comum desta concepção é a que considera que a
Terra é esférica e que as pessoas vivem em sua superfície, porém na qual
ainda não se concebe a vertical como relativa, mas sim absoluta, apontando
sempre na direção do eixo da Terra. Na nossa entrevista este ponto podia ser
avaliado sobretudo através da posição em que a casinha era colocada sobre a
superfície da Terra esférica e também através da posição em que o foguetinho
decolava ou pousava na Terra e em outros astros esféricos durante a “viagem”.
As crianças que concebiam a vertical como absoluta colocavam a casinha e o
foguete sempre “de pé”. Por exemplo, quando era pedido que fosse colocada a
casinha no “pólo sul” da Terra, elas a colocavam com o telhado encostado à
superfície e a base voltada para o chão.
As cinco concepções de Terra que acabamos de descrever
correspondem, quase perfeitamente, às “noções” ou “modelos mentais” de
Terra apresentados pelas crianças também já descritos por outros autores
14
.
Esses modelos podem ser interpretados como uma seqüência que vai desde
uma concepção puramente realista ingênua, de uma Terra plana, até a mais
14
P. ex.: NUSSBAUM e NOVAK, 1976; NUSSBAUM, 1979; VOSNIADOU e BREWER, 1992.
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conceitual e próxima da concepção científica de uma Terra esférica. Os outros
modelos, que misturam características realistas e conceituais, sendo por isso
chamados de “modelos sintéticos” por Vosniadou e Brewer
15
, podem ser
interpretados como soluções intermediárias entre os dois pólos:
- No modelo da Terra dupla ocorre uma simples justaposição das noções
de uma Terra plana e de uma Terra esférica. A criança ainda mantém uma
distinção completa entre ambas, acreditando que existem duas Terras distintas:
a que ela vive, que é plana, e outra esférica, que fica no céu, ou no espaço.
- O modelo da Terra oca já é uma solução híbrida: a forma externa da
Terra já é esférica, porém o chão, que fica no interior da esfera, continua sendo
plano, sendo assim fruto de um esforço criativo de síntese, por parte da criança,
entre duas concepções inicialmente opostas.
- A Terra esférica achatada representa outra solução sincrética: a forma
da Terra já é aproximadamente esférica, porém existem porções de sua
superfície, no topo e em baixo, que são planas.
15
VOSNIADOU e BREWER, 1992.
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