III. 2. INDICAÇÕES PARA A MELHORIA DO ENSINO DE
ASTRONOMIA NO ENSINO FUNDAMENTAL
Nesta seção, retomamos o tema que deu origem a este trabalho, que será
examinado à luz dos resultados nele obtidos. Como indicamos na introdução, este
estudo foi inteiramente motivado por uma prática de vários anos em projetos de
extensão executados na Universidade Federal do Espírito Santo, cujo objetivo era
a divulgação e o ensino de Astronomia para a comunidade em geral,
especialmente estudantes e professores de 1
o
e 2
o
graus. Prática que estava a
exigir, como contrapartida, um aprofundamento teórico com relação aos seus
objetivos, seu alcance, ao conhecimento do contexto em que se desenvolvia.
O presente trabalho, dentro de um recorte a que inevitavelmente teria que
se ater, e que escolhemos como sendo apenas relativo ao ensino fundamental, à
natureza e conteúdo do conhecimento de professores e estudantes deste nível de
ensino, forneceu diversas indicações acerca do contexto cognitivo em que se
desenrola o ensino de Astronomia no ensino fundamental. Em especial revelou o
que nos pareceu ser os traços mais marcantes da natureza deste conhecimento. A
partir desses resultados é possível perceber algumas pistas interessantes com
relação a possíveis caminhos a serem seguidos em futuras intervenções. Antes de
iniciarmos essa discussão, porém, julgamos importante explicitar alguns
pressupostos pedagógicos básicos que assumimos e que, inevitavelmente,
estarão envolvidos, implícita ou explicitamente, ao longo da mesma.
Como questão de princípio, adotamos uma concepção geral de educação
inspirada em Paulo Freire, segundo a qual a educação deve ser um processo que
promova a inserção do homem no seu tempo e espaço, que promova a
emergência de uma consciência da circunstância em que vive, acompanhada de
uma ação transformadora sobre esta mesma circunstância
4
.
Obviamente nossa temática não é a mesma temática central freiriana: a da
opressão, da dominação versus libertação. O conteúdo do ensino de que nos
ocupamos refere-se à Astronomia, mas, ao estilo freiriano, também desejamos nos
referir fundamentalmente ao homem, à sua situação existencial: nossa temática é
4
FREIRE, 1980a, 1980b.
256
a da inserção do homem no cosmos, da sua tomada de consciência de sua
posição no universo, da sua ação investigadora e de afrontamento dos desafios e
do desconhecido nele presentes, da aventura de sua exploração, e também,
porque não, da simples fruição estética de sua beleza.
Assumiremos também, como princípio, dois pressupostos baseados em
idéias de Georges Snyders
5
: primeiro a de que a educação pode ser pensada
como um processo que deve promover o acesso das pessoas à cultura elaborada,
um processo de transcendência da cultura primeira, do senso comum, de modo a
atingir um estágio de compreensão ampliada do mundo em que vivem e de si
mesmos; segundo, a de que o ensino deve ser um processo prazeiroso, que dê
alegria aos estudantes e professores, um prazer pela maior compreensão da
realidade fornecida pela cultura elaborada, que, ao mesmo tempo, represente uma
continuidade das alegrias da cultura primeira, mas também uma ruptura com o seu
horizonte estreito e imediato .
A preocupação de Snyders, como a de Freire, também é essencialmente
existencial, e suas idéias nos parecem extremamente pertinentes no caso do
ensino de Astronomia: como vimos, boa parte do conhecimento das crianças e
professores é ingênuo, baseado no senso comum, cabendo, sem dúvida à escola
o papel de promover uma superação, uma transcendência do mesmo, o acesso à
cultura elaborada, à visão do universo e de nossa posição dentro dele
descortinada pela ciência. A meta de um ensino prazeiroso também é
extremamente factível no caso da Astronomia, cujo objeto de estudo, o céu,
notoriamente, desperta interesse e fascínio na maioria das pessoas.
Assumimos assim que o objetivo principal do ensino de Astronomia no
ensino fundamental não deva ser simplesmente a tradicional aprendizagem dos
conceitos científicos, embora, evidentemente, isto faça parte, mas antes fazer com
que os estudantes percebam (tomem consciência de) como a natureza é bela,
interessante e desconhecida; e, em decorrência, que vale a pena engajar-se na
aventura de seu conhecimento, de acesso à compreensão científica, que isso traz
alegria e proporciona uma visão ampliada, um desvelamento de nossa posição no
5
SNYDERS, 1988.
257
universo, de nosso planeta, do tempo e do espaço em grande escala em que
vivemos, ou seja, da moldura cósmica onde se desenrola o drama humano.
Passemos agora a examinar, em detalhe, algumas das pistas levantadas
pelo presente estudo com relação a pontos que devem ser atacados para que se
concretize um ensino de Astronomia coerente como os pressupostos
anteriormente apontados.
Podemos tomar como ponto de partida os resultados que obtivemos com
relação à natureza do conhecimento dos professores e estudantes, levantadas em
nosso trabalho. Vimos que ela possui três traços fundamentais:
- apresenta diversas noções baseadas na interpretação ingênua de que a
aparência com que os objetos se apresentam aos nossos sentidos corresponde
exatamente ao que eles são (realismo ingênuo);
- inclui muitas noções que vêm expressas na forma de chavões verbais ou
gráficos, os quais são veiculados fora do contexto científico em que foram criados,
ou seja, vêm desacompanhados da indicação das relações lógicas que lhes
conferiam sentido naquele contexto, sendo assim reinterpretados pelas
professoras e estudantes de acordo com seu senso comum;
- a representação do espaço é mais qualitativa/topológica do que
quantitativa/geométrica, o que significa que relações de separação, vizinhança,
ordem, envolvimento e continuidade são mais enfatizadas na estruturação do
espaço do que as distâncias, proporções, coordenadas e a coerência de conjunto
de projeções e perspectivas.
É fácil perceber que se temos como meta pedagógica promover uma
transcendência da cultura primeira, uma compreensão ampliada, um acesso à
cultura científica elaborada, uma consciência do entorno cósmico e de nossa
posição dentro dele, qualquer uma das três características apontadas representa
sério entrave, ou seja, será necessário trabalhar a superação de todos estes três
traços, será necessário atacar em três frentes. As estratégias que passaremos a
sugerir para isso, como veremos, não são excludentes, ou seja, uma mesma
“arma” pode ser utilizada para combater em mais de uma das três frentes, que
também acham-se inter-relacionadas.
258
Por exemplo, será difícil, ou mesmo impossível, a superação completa de
uma visão realista ingênua com relação à Terra, enquanto o estudante, ou o
professor, não for capaz de uma coordenação de pontos de vista, de uma
representação geométrica do espaço, pois só assim será capaz, por exemplo, de
uma relativização da direção vertical, de uma articulação entre os pontos de vista
topocêntrico e heliocêntrico e assim compreender plenamente que aquela Terra
esférica que aparece nas representações, vista de fora, do espaço, é realmente o
lugar onde ele vive.
Para a superação do realismo ingênuo parece-nos que o essencial é
trabalhar a relativização do próprio ponto de vista, a problematização das
aparências.
Podemos separar as noções realistas ingênuas ligadas aos astros
basicamente em dois tipos: o primeiro, mais simples, ligado a uma não
consideração da distância real que nos separa dos mesmos. Assim, por exemplo,
acredita-se que a Lua e o Sol são discos, que eles nos acompanham quando
saímos a passear, que as estrelas são objetos muito pequenos e próximos; porque
falta considerar a sua distância até nós e compreender como as aparências
mudam quando ela varia. Acreditamos que esse tipo de “ilusão” pode ser
trabalhado de maneira relativamente simples através de atividades com modelos
tridimensionais, nos quais poderíamos aproximar e afastar diversos objetos
pedindo que seja observada a variação na sua aparência; ou, talvez melhor,
simplesmente trabalhar com objetos reais presentes no meio ambiente (um poste,
uma casa, pessoas, montanhas etc.). Esse tipo de atividade poderia ser
desenvolvido nas séries iniciais do ensino fundamental, onde, de fato, a
observação atenta do ambiente deveria ser enfatizada. Evidentemente, ao realizar
tais atividades também estarão envolvidas as representações espaciais. A
consideração das distâncias acha-se ligada à geometrização do espaço.
O segundo tipo importante de noções realistas ingênuas relativas aos
astros seriam as ligadas a uma falta de consideração e coordenação de diferentes
pontos de vista em situações onde varia não apenas a distância, mas,
necessariamente, a posição do observador e o ângulo com que o objeto é
observado. Assim, por exemplo, a vertical é considerada absoluta, a “Terra-
planeta” diferente da Terra onde vivemos e os movimentos do astros no céu,
259
vistos de um referencial local, não são relacionados e compreendidos à luz de um
referencial heliocêntrico. Aqui, como já discutimos anteriormente, acha-se
completamente envolvida a questão da representação do espaço. A estratégia a
ser utilizada, não temos dúvida, novamente é a realização de atividades práticas
com modelos tridimensionais.
No desenrolar do curso “Astronomia no 1
o
Grau”, tivemos várias evidências
que mostraram a importância, o forte impacto, as dificuldades e avanços ocorridos
em virtude do trabalho com modelos tridimensionais. Por exemplo, foi um
verdadeiro choque para várias professoras perceber, no trabalho com o modelo de
Terra (uma bola de isopor), que o sentido de sua rotação dependia do ponto de
vista sob o qual a mesma era observada: visto do pólo norte, anti-horário, do sul,
horário. A coordenação entre os pontos de vista local e heliocêntrico também
mostrou-se problemática de início, mas grandes progressos foram percebidos. No
trabalho com os modelos, o ponto de vista em que a pessoa se encontra é o
inverso de nosso ponto de vista natural, topocêntrico, pois é o do espaço, fora da
Terra, que a pessoa visualiza a própria Terra e os demais astros. No modelo, o
espaço da sala em que se trabalha representa o espaço cósmico e é nele que a
pessoa se encontra. Toda a dificuldade reside em se transportar para o ponto de
vista da superfície da Terra. Nessa tarefa o ponto chave pareceu ser o da
visualização do plano do horizonte de um observador na superfície da Terra,
representado por um alfinete fincado na bola de isopor. Quando ocorria essa
visualização o transporte ao ponto de vista local e a decorrente visualização da
posição e movimento dos astros com relação a ele era possível. Uma providência
que mostrou-se extremamente útil para facilitar essa visualização foi o uso de um
pequeno pedaço plano de folha de papel, preso na base do alfinete que
representava o observador, para a representação do seu plano do horizonte.
Devido à complexidade deste tipo de atividade, da maturidade exigida na
representação do espaço
6
, julgamos que este tipo de trabalho com modelos
tridimensionais, que envolvem o uso de um ponto de vista heliocêntrico e sua
articulação com o ponto de vista local, como na explicação das estações do ano e
das fases da Lua, só deva ser realizado nas séries finais do ensino fundamental.
6
Lembramos, mais uma vez que, segundo os resultados de PIAGET e INHELDER (1993, p.227-
228), somente a partir dos 9-10 anos as crianças tornam-se capazes de coordenar diferentes pontos
de vista.
260
Afora estas noções realistas, ligadas a dificuldades de relativização do
próprio ponto de vista espacial, há ainda algumas outras ligadas a outros tipos de
questões físicas, como a do aquecimento produzido por uma fonte de luz, que
depende não só da distância mas também do ângulo de incidência sobre a
superfície. Também nesses casos julgamos que a melhor maneira de se trabalhar
seria a partir de atividades experimentais.
Em suma: nossa indicação, com relação à superação do realismo ingênuo,
é a realização de atividades práticas e experimentais, envolvendo o uso de
modelos tridimensionais, acompanhadas de uma discussão que enfoque
prioritariamente a necessidade de relativização do próprio ponto de vista. Nessas
atividades é importante a consideração de sua adequação ao estágio de
desenvolvimento dos estudantes, sobretudo com relação à representação do
espaço, à coordenação de distintos pontos de vista.
A superação do conhecimento feito de chavões forçosamente passa pelo
exame e compreensão das relações lógicas que lhes são subjacentes, do contexto
racional, científico, do qual foram extraídos. Obviamente não se trata de uma
tarefa simples, pois o conhecimento científico é um conhecimento elaborado, em
que os conceitos acham-se sempre “enredados” em diversas relações lógicas. A
iniciação a este universo evidentemente envolve um árduo caminho de construção
e estabelecimento de relações racionais; nunca será fácil ou simples. Contudo,
mesmo a nível do ensino fundamental, respeitado o nível de desenvolvimento dos
estudantes, acreditamos que deve e pode ser enfatizada a sua contextualização,
bem como adotada uma postura construtivista, em que a atividade do próprio
aluno na construção e estabelecimento das relações seja o primordial.
Por exemplo, as figuras que ilustram várias explicações de fenômenos
astronômicos, a começar pela imagem padrão da própria Terra, a que tanto nos
referimos ao longo do capítulo 2, jamais deveriam ser consideradas como auto-
evidentes, auto-explicativas, como sói acontecer nos livros didáticos. Elas sempre
deveriam vir acompanhadas de uma discussão do problema da escala, do
caminho seguido até se chegar àquela representação altamente abstrata, das
dificuldades de se representar um objeto tridimensional no plano, da questão do
sistema de projeção adotado, como, por exemplo, no caso dos planisférios, onde
os pólos aparecem representados por segmentos de reta. Este é um ponto em
261
que, certamente, seria muito vantajosa uma aproximação entre o ensino de
Ciências e os de Artes e Geografia.
No caso de se trabalhar a noção de Sol, de se relacioná-lo com as estrelas,
teria que ser necessariamente abordada a questão das distâncias imensas que
nos separam delas, deveria se retomar a questão da variação da aparência dos
objetos com a distância, talvez pudesse ser discutida a questão de qual seria a
aparência do Sol visto de outros planetas, dos mais distantes, de Plutão, por
exemplo.
Outro ponto que pode e deve ser adotado como estratégia na superação
dos chavões, seria uma ênfase na generalização dos conceitos. Com efeito, um
dos traços marcantes dos chavões é a sua particularização, em contraste com a
generalidade dos conceitos científicos.
Por exemplo, como vimos no capítulo 2, a translação era concebida pelas
professoras apenas como sendo “o movimento da Terra em torno do Sol”. Ao
contrário, acreditamos que deveriam ser discutidas as características cinemáticas
gerais dos movimentos de rotação e translação
−
trabalho esse que se revelou
extremamente producente e iluminador durante o nosso curso
7
. Poderia ser
ressaltado que os demais planetas e satélites, como a Lua, também apresentam
estes movimentos. A Terra poderia ser comparada com outros planetas, indicando
que eles também apresentam órbitas, movimentos de rotação e translação, eixos
inclinados, pólos, equador, dias e noites, estações do ano, gravidade etc.
Outro ponto essencial, do qual o ensino de Astronomia no ensino
fundamental jamais deveria ser dissociado é a observação do céu a olho nu. Ela
pode ser um meio eficientíssimo de se trabalhar a superação do conhecimento por
chavões, livresco, bem como do realismo ingênuo e da representação espacial
qualitativa/topológica, desde que feita com método e acompanhada de uma
discussão e interpretação de seus resultados.
Já tivemos a oportunidade de justificar a enorme importância que atribuímos
à observação do céu no ensino de Astronomia no ensino fundamental ao
descrever, no início do capítulo 2, as ênfases que adotamos no curso que
realizamos. Acreditamos, de fato, que ela deva ser encarada como uma parte
7
Sobretudo em virtude de ter sido baseado numa atividade prática, em que se devia utilizar o
próprio corpo para a representação destes tipos gerais de movimento.
262
fundamental do conteúdo deste ensino. Ensinar a observar a natureza, exercitar
esta capacidade, deve ser, em nossa opinião, uma das metas prioritárias do
ensino de Ciências no ensino fundamental.
Acompanhando
cada
um
dos
principais
temas
de
Astronomia
tradicionalmente abordados neste ensino: orientação, rotação e translação da
Terra, fases da Lua, estações do ano, o sistema solar etc., é possível desenvolver
um programa de observações a eles diretamente relacionados. Por exemplo:
- Orientação: observação das posições de nascimento e ocaso do Sol, de
sua variação ao longo do ano
8
, e o acompanhamento da variação das sombras ao
longo do dia, trabalhando-se com um gnômon, instrumento muito simples (uma
vareta alinhada na vertical sobre uma superfície plana, onde possam ser marcadas
as posições do extremo da sombra da vareta ao longo do dia) e de enorme
importância prática e histórica, com base no qual os pontos cardeais podem ser
determinados precisamente
9
.
- Rotação da Terra: observação do nascimento e ocaso do Sol, da Lua e
das estrelas.
- Fases da Lua: observação da Lua, da variação de sua aparência (fase)
com o passar dos dias, de sua posição em relação ao Sol em cada uma das fases,
do horário em que ela nasce e se põe, o que, se feito de maneira sistemática,
poderá servir de fundamento observacional para a discussão e construção de um
modelo explicativo para as fases, além de servir de subsídio para a discussão dos
movimentos da Lua, da existência de uma face oculta etc.
- Translação da Terra: observação da sucessão das constelações visíveis
ao longo do ano.
- Estações do ano: observação da variação das sombras (p. ex., repetindo a
atividade com o gnômon em diferentes épocas do ano), da posição de nascimento
e ocaso do Sol e das constelações visíveis ao anoitecer com o passar do ano.
- O sistema solar: observação dos planetas visíveis a olho nu, de seu
deslocamento aparente diante das estrelas.
8
O que desmistificaria o chavão que diz que “o Sol nasce a leste”, deixando subentendido que ele
nasceria sempre na mesma posição, no ponto cardeal leste, o que não ocorre.
9
A importância e uso do gnômon tanto na determinação dos pontos cardeais como na das estações
do ano são indicados, por exemplo, por BOCZKO (1984) e CANIATO (1975).
263
Seria interessantíssimo se fosse desenvolvido na escola, por exemplo, uma
programa dedicado ao acompanhamento do ciclo anual das quatro estações,
onde, no início de cada estação se fizessem observações do Sol (suas posições
de nascimento e ocaso), das sombras, das constelações visíveis ao anoitecer para
que se percebesse como elas se sucedem, como a natureza se transforma e
como, após transcorrido um ano, o ciclo se fecha e se repete.
Um aspecto que cabe destacar, quanto às observações que estamos
propondo, seria a exigência de sua organização e sistematização, ou seja a
utilização de uma metodologia, que seria em si muito instrutiva: em primeiro lugar
seria necessário o uso de referências, seja do próprio céu, seja do horizonte e, em
geral, uma orientação com a identificação, ao menos aproximada, dos pontos
cardeais e o registro da data e da hora. Se for feito um registro da observação
através de desenho, ou se se trabalhar com cartas celestes, será necessário o
aprendizado e aplicação de noções de perspectiva e projeção, questões nada
triviais, ligadas às representações espaciais. Pode-se também realizar estimativas
de ângulos usando o próprio corpo, de acordo com regras práticas usadas pelos
astrônomos amadores. Em suma trata-se de uma observação que já incorpora
uma certa sistematização e busca de objetividade características da ciência.
Nossa experiência durante o curso “Astronomia no 1
o
Grau” indicou que a
grande ênfase que demos às observações foi acertada: as professoras
entregaram-se com grande entusiasmo à sua realização, as discussões que eram
feitas a partir delas, no início de cada aula, foram sempre acaloradas, de uma
grande riqueza no levantamento e discussão de questões não só observacionais,
mas também teóricas. De fato, talvez o maior mérito do curso tenha sido produzir
uma mudança significativa na maneira como as professoras
−
sobretudo o
pequeno grupo que acompanhou o curso até o final
−
se relacionavam com o céu:
uma relação que antes era distanciada, utilitarista (olhavam-no para “ver o tempo”),
ou de mera apreciação estética, transformou-se numa relação muito mais
interessada, envolvendo a curiosidade, a observação atenta do Sol, da Lua, de
estrelas e planetas, de sua aparência, suas posições e movimentos, o seu
reconhecimento. Concluímos assim que, sendo nosso objetivo a promoção de uma
consciência do entorno cósmico, não resta dúvida que a ênfase na observação do
céu foi um caminho que deu bons resultados.
264
Para a superação da representação qualitativa/topológica do espaço, por
sua vez é necessário trabalhar a construção de uma representação
quantitativa/geométrica, ou seja, deve se enfatizar a realização de medidas e o
uso de noções geométricas Julgamos que esse deve ser encarado como um
trabalho de base, fundamental, cuja importância deve ser fortemente ressaltada:
sem noções geométricas e quantitativas é impossível o acesso à visão de universo
tal como é descortinada pelo conhecimento científico, é impossível a compreensão
dos modelos utilizados pela Astronomia na sua descrição. Sem uma
representação geométrica do espaço, como vimos, a superação do realismo
ingênuo e de muitos dos chavões também torna-se inviável. Esse é um terreno em
que uma aproximação entre o ensino de Ciências e o da Matemática seria muito
bem-vinda.
Ligadas à Astronomia, há uma série de atividades que podem ser
desenvolvidas nesse sentido. Por exemplo:
- Realização de medidas de ângulos usando o próprio corpo
10
.
- Realização de medidas indiretas de alturas e distâncias por triangulação,
ou seja, aplicando a noção de semelhança de triângulos. Pode-se começar
usando, por exemplo, o próprio gnômon para medir a altura de prédios e postes
pelo tamanho de sua sombra, em comparação com a do gnômon, cuja altura é
conhecida. Acreditamos que isso poderia ser trabalhado mesmo nas séries iniciais,
de maneira puramente geométrica, desenhando os triângulos semelhantes em
escala reduzida numa folha de papel e medindo os comprimentos de seus lados
com uma régua, sem necessidade de cálculos. Desta forma estar-se-ia, também,
trabalhando a noção de escala. Como prolongamento deste trabalho poder-se-ia
introduzir a noção de paralaxe e realizar a medida indireta de distâncias também
por semelhança de triângulos
11
.
- Construção de modelos em escala. Poder-se-ia construir modelos
tridimensionais, por exemplo, do sistema Terra-Lua, Terra-Sol-Lua ou do sistema
10
Esta é uma técnica utilizada na astronomia amadora: com o braço esticado pode-se usar o dedo
indicador, o polegar, o punho cerrado, a mão espalmada etc, para realizar estimativas da distância
angular entre os objetos celestes (veja, por exemplo, FERREIRA e ALMEIDA, 1995, p. 206).
11
A realização desse tipo de atividade é indicada no livro “Iniciação à Ciência”, publicado pela
Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências (ALBERS et al., 1971).
265
solar inteiro com todos os planetas
12
. Nossa experiência mostra que o impacto
desse tipo de atividade, ao mostrar de maneira palpável como é imenso o espaço
existente entre os astros, como a Terra é diminuta em relação ao Sol e às
distâncias que a separam dos demais astros, é enorme.
- Discussão e exercício do uso de perspectivas e projeções. Uma atividade
muito importante seria a de simplesmente observar atentamente e representar
graficamente como muda a aparência dos objetos de acordo com o ponto de vista,
de acordo com o ângulo sob o qual estão sendo observados. Por exemplo, seria
importantíssimo mostrar que um círculo, numa visão oblíqua, fica com aparência
de uma superfície cujo contorno é uma elipse. Isso permitiria compreender melhor
o batido chavão gráfico que representa a órbita da Terra em torno do Sol através
de uma elipse alongada com o Sol no centro. A interpretação de mapas também
poderia ser trabalhada, num área interdisciplinar com a Geografia. Em especial a
interpretação dos planisférios, das projeções utilizadas para representar a
superfície terrestre no plano seria interessante. O uso, nada trivial, de cartas
celestes, também poderia ser exercitado. Acreditamos que atividades como as
primeiras que sugerimos, de simples observação e registro das variações nas
aparências dos objetos de acordo o ângulo de visada, possam e devam ser feitas
nas séries iniciais, enquanto que a discussão de mapas e projeções, o uso de
cartas celestes, deveriam ser conduzidas nas séries finais.
- Atividades que envolvam o uso de modelos tridimensionais dos astros,
que, mais uma vez enfatizamos, são essenciais. O uso de um material simples
como bolas de isopor para representação da Terra e da Lua, de uma lâmpada
para o Sol, são um meio excelente de se representar fenômenos astronômicos,
tais como as fases da Lua e as estações do ano, para cuja compreensão é
fundamental a visão tridimensional, que é impossível de ser alcançada
trabalhando-se apenas no espaço forçosamente bidimensional dos cadernos e
livros didáticos. Com esses modelos podem ser trabalhados, por exemplo, a
visualização de planos, direções, o uso de referenciais e a coordenação de pontos
de vista.
12
Uma discussão dessas atividades e indicações de materiais e metodologias a serem utilizadas
são feitas, por exemplo, por CANALLE (1994a e 1994b).
266
Um procedimento a ser utilizado com os professores, que, acreditamos,
seria extremamente interessante para se trabalhar a superação das três feições da
natureza do seu conhecimento que anteriormente apontamos, seria a realização
de uma crítica dos livros didáticos que eles próprios utilizam. Evidentemente tal
programa de trabalho teria que ser precedido, necessariamente, por um uma
atividade de formação continuada que lhes permitisse a construção de uma base
de conhecimentos suficiente para a realização da crítica. Através dela, certamente,
poderiam ser aprofundados seus conhecimentos e, sobretudo, a sua consciência
das dificuldades envolvidas no ensino da Astronomia, da necessidade de se
quebrar com o círculo vicioso em que a maioria dos professores e estudantes do
ensino fundamental acham-se presos, pois o livro didático, ao que parece, em
geral reforça o uso de chavões, a representação topológica do espaço e
escamoteia a observação da natureza
13
.
Uma questão educacional geral, a que já nos referimos rapidamente, mas
que merece ser novamente destacada é o cuidado que se deve ter para que se
exerça uma prática que seja efetivamente construtivista, que priorize a atividade do
estudante, ou do professor, no caso de um curso de formação continuada, que os
considere como sujeitos de seu próprio desenvolvimento.
Embora a perspectiva construtivista seja consenso entre os educadores a
nível teórico, na prática, a tentação de se persistir e recair no “bancarismo”, numa
concepção de conhecimento como resultante de um processo de “transmissão” ou
“aquisição”, seja por ser essa a postura tradicional, seja pela maneira de
apresentação destes conteúdos nos próprios livros didáticos, ainda é muito forte.
Nesse sentido um ponto que sempre deve ser lembrado é que, ao mesmo
tempo que se deve buscar promover o desenvolvimento do estudante (ou
professor), também é necessário que se considere o seu estágio de
desenvolvimento, trabalhando no que Vygotsky chama de “zona de
desenvolvimento proximal”, ou seja, uma região em que, mediante o estímulo e a
cooperação de outras pessoas, o estudante já é capaz de avançar além do
estágio em que se encontra, do que conseguiria apreender isoladamente,
13
Podemos concluir isso a partir dos resultados apresentados numa monografia de fim de curso
(LEITE, 1998) e nos trabalhos de CANALLE et al. (1996, 1997) e TREVISAN et al. (1997).
267
trabalhando-se assim não apenas as funções intelectuais já maduras, mas
principalmente as funções em amadurecimento
14
.
Quanto a isso, no caso do ensino de Astronomia no ensino fundamental,
uma questão em especial merece destaque: via de regra as explicações dadas
acerca dos fenômenos astronômicos sempre utilizam um referencial situado fora
da Terra, de onde ela é observada inteira, como uma “bola”, um referencial que,
se não está sobre o Sol, está em repouso em relação ao Sol, ou seja, um
referencial que poderíamos chamar de “heliocêntrico”. Contudo, como já
mencionamos anteriormente, os estudos de Piaget e Inhelder indicam que a
coordenação de diferentes pontos de vista só ocorre a partir dos 9-10 anos. A
partir deste instante, em que a criança começa a coordenar distintos pontos de
vista é que julgamos que o ensino de Astronomia a partir de um referencial
heliocêntrico pode ser produtivo e contribuir para o próprio desenvolvimento desta
função em amadurecimento. Antes disso os círculos ou “bolas” representando a
Terra, para as crianças, nada mais são do que bolas e círculos que as pessoas
chamam de planeta Terra, mas que não são a mesma coisa que o lugar onde elas
vivem.
Esta distinção é marcante e foi claramente observada em nossa
investigação acerca do universo das crianças. Para as crianças menores existe a
Terra em que vivemos, que é plana, e a “Terra-planeta”, duas coisas muito
distintas. Uma fica no céu, ou no espaço (a Terra-planeta), e, a outra (a Terra
plana), “aqui embaixo”. Portanto, este ponto de vista heliocêntrico não é
compreendido como referindo-se à Terra em que elas vivem. Consideramos,
assim, que este tipo de abordagem deva ser evitado ou usado com muito cuidado
nas séries iniciais e só se inicie a partir da 4
a
ou 5
a
séries, e, de preferência, que
seja precedida por um trabalho em que se busque promover o desenvolvimento de
uma representação geométrica do espaço, como indicamos anteriormente. Para
as série iniciais sugerimos apenas a observação do céu e a descrição dos
fenômenos a partir de um ponto de vista decididamente topocêntrico, a partir da
Terra onde elas vivem, de onde observam o universo através do céu. Nas séries
finais poderia ser introduzido o ponto de vista heliocêntrico com os devidos
14
VYGOTSKY, 1996, p.89.
268
cuidados, lembrando que um dos grandes nós deste ensino será justamente a
articulação entre os dois pontos de vista: o da superfície da Terra e o do espaço.
Para concluir esta seção, após termos apontado para algumas questões de
fundo relativas ao ensino de Astronomia que necessitam ser superadas, após
termos indicado algumas estratégias que poderiam ser usadas nesta superação,
julgamos, por fim, importante relembrar alguns pontos positivos que detectamos
junto às professoras e estudantes, que nos fazem crer que, de fato, essa
superação é viável:
Com relação às professoras, é de se salientar, por exemplo, o gosto e
entusiasmo com que as mesmas se entregaram às atividades de realização de
medidas de ângulos com o próprio corpo e, também, à maior parte do trabalho
com os modelos tridimensionais, em que era desenvolvido o uso de uma visão
geométrica, sendo nítido o seu progresso. Concluímos assim que a freqüente
ausência de uma representação quantitativa/geométrica de espaço não parece se
dever a qualquer incapacidade ou falta de interesse em trabalhar com medidas ou
questões geométricas por parte da professoras, mas, principalmente, a uma falta
de familiaridade com esse tipo de atividade, a uma falta de exercício deste tipo de
representação.
Outro ponto altamente positivo foi o gosto com que as professoras também
se dedicaram às observações do céu. Como já apontamos antes, essa talvez
tenha sido uma das transformações mais importantes que observamos em
decorrência do curso: mudou a relação que as professoras antes mantinham com
o céu, mudou no sentido de se tornar muito mais atenta e interessada, muito mais
consciente desta realidade grandiosa em que nos achamos inseridos, do contexto
cósmico em que vivemos.
Lembramos também que as professoras, embora incorporando em seu
conhecimento os chavões, não o faziam de uma maneira meramente passiva, mas
lhe davam uma significação pessoal, os reinterpretavam à luz de seu senso
comum, ou seja, construíam, com os meios que dispunham, o seu conhecimento,
muita vezes adotando uma postura cética e crítica em relação aos chavões
15
.
Com relação às crianças, não vemos nenhum motivo para que também não
lhes sejam aplicáveis os comentários anteriores, relativos à falta de familiaridade e
15
Veja seção II.3.
269
exercício de noções geométricas e medidas, ao gosto pela observação do céu e à
elaboração de seu próprio conhecimento, sendo ainda notória a sua curiosidade
com relação ao céu e ao universo, portanto o seu interesse e motivação para
estudá-lo.
270
Compartilhe com seus amigos: |