II.4. A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO: ESPAÇO GEOMÉ-
TRICO x ESPAÇO TOPOLÓGICO
Ao levantarmos as concepções iniciais das professoras, sobretudo as
relativas aos movimentos da Terra, sua órbita, as estações do ano e os
movimentos da Lua, inferidas em grande parte com base em desenhos e
atividades com modelos tridimensionais, pudemos perceber que uma das
características gerais mais evidentes dos modelos concebidos pelas professoras,
para os sistemas Terra-Sol ou Terra-Lua, era a quase total ausência de
preocupação com relação às distâncias e proporções que deveriam ser
obedecidas pelos astros entre si e por suas órbitas. Chamou-nos especialmente a
atenção a grande proximidade com que, freqüentemente, a Terra era representada
com relação ao Sol, ou a Lua com relação a Terra, tanto nos desenhos como nos
modelos tridimensionais. A distância da Terra ao Sol poderia corresponder a
apenas uns dois ou três diâmetros terrestres e, a da Terra a Lua, até a menos de
um diâmetro terrestre
70
.
No trabalho com os modelos tridimensionais também foi notável a grande
falta de atenção à posição em que deveriam ficar os planos das órbitas: por
exemplo, freqüentemente o plano em que a órbita da Terra era representada não
passava pelo Sol, ficando acima ou abaixo dele; também a visualização de planos,
como o plano do equador ou o plano do horizonte de um ponto da superfície da
Terra
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, necessária para indicar qual seria, por exemplo, a posição do Sol com
relação ao equador terrestre ou ao horizonte do observador, freqüentemente
apresentava dificuldades.
A essa “falta de atenção” a propriedades geométricas como distâncias,
proporções e orientação de planos no espaço, soma-se também a observação,
feita em alguns momentos de nosso levantamento, de que as professoras
aparentavam pouca familiaridade com noções geométricas básicas, por exemplo:
ao dizer que a Terra tem a forma “circular”, ou que a Terra é “49 vezes maior que
a Lua” ou “300 vezes menor que o Sol”, mas sem especificar a que tipo de
70
Veja, p. ex., figuras 32(a), 32(b), 36(c), 38(a), 38(c).
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O plano do horizonte de um certo ponto sobre a superfície da Terra corresponde ao plano que
tangencia a esfera terrestre naquele ponto.
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grandeza espacial se referia a comparação (diâmetro, superfície ou volume), ou
ainda que o tamanho da Terra é de “milhões de quilômetros”, também sem
especificação da grandeza a que esta medida se referiria.
Essas constatações configuram um quadro que parece indicar que o uso de
noções e relações geométricas, parece ser pouco relevante na representação de
universo das professoras.
Ao examinarmos o universo das crianças, no capítulo anterior, também
havíamos chegado a conclusão semelhante: também as crianças revelavam dar
pouca atenção às distâncias e proporções entre os astros e evidenciavam carência
de noções geométricas, revelada, por exemplo, na dificuldade de distinção entre
corpos bidimensionais e tridimensionais. Havíamos notado, então, como estes
fatos pareciam ligados à questão da própria representação do espaço na criança
(veja p.113), que, de acordo com os resultados obtidos por Piaget e Inhelder
(1993), é marcada por uma evolução de uma representação do tipo topológico,
nas crianças mais jovens, para uma representação geométrica, euclidiana, que se
iniciaria por volta dos 8-9 anos. Um espaço representativo “topológico”
corresponderia, assim, a uma representação do espaço estruturada por relações
topológicas, ou seja, relações de vizinhança, separação, ordem, envolvimento e
continuidade; enquanto que o espaço “geométrico”, ou “euclidiano”, seria uma
representação estruturada com base em relações de distâncias e proporções
(Piaget e Inhelder, 1993).
Parece-nos que a mesma interpretação é aplicável às professoras: algumas
de suas representações espaciais, como a da disposição dos astros, ainda
parecem fortemente marcadas por uma estruturação dominada por relações
topológicas, em detrimento das geométricas. Isso nos parece ter ficado bem
evidente nos modelos por elas concebidos para a representação dos sistemas
Terra-Sol e Terra-Lua: em ambos a essência da concepção acerca da disposição
dos astros parece ser a de que um astro acha-se nas vizinhanças do outro,
girando em torno, ou em volta dele; ou seja, a ênfase parece recair toda em
relações de vizinhança e envolvimento; pouco importando a distância exata entre a
Terra e o Sol, a proporção de tamanhos entre eles e a posição do plano da órbita,
ou seja, as relações geométricas.
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De acordo com essa nossa interpretação, o que antes mencionamos como
uma “falta de atenção” com relação às distâncias e proporções, em verdade não
parece ser apenas uma questão de “falta de atenção”, mas uma falta de
representação de relações do tipo euclidiano, em favor das relações topológicas,
uma ausência de estruturação do espaço concebido pelas professoras com base
em relações geométricas.
Um fator que deve concorrer para a manutenção da representação espacial
das professoras com relação aos astros neste nível topológico são as imagens
apresentadas nos livros didáticos que, tradicionalmente, não respeitam as
proporções reais e nem vêm acompanhadas de qualquer alerta ou explicação
quanto a isso. Já chamamos a atenção para esse fato quando discutimos a noção
de órbita terrestre das professoras, inspirada num chavão gráfico que é
completamente fora de escala (veja figura 34). No artigo de Trevisan et al. (1997),
onde os autores apresentam resultados da análise que fizeram de livros didáticos
do ensino fundamental quanto a conteúdos de Astronomia uma das constatações
também refere-se exatamente a esse ponto:
“As figuras, na maioria das vezes, quase sem exceção, passam aos alunos
um conceito distorcido, induzindo uma visão fora da realidade. Temos como
exemplo as dimensões relativas do Sol e dos planetas. Em nenhum texto vê-se
uma figura desenhada em escala, e nenhuma nota explicando o fato de que o
desenho está totalmente fora de escala.”
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Com efeito, parece-nos que há aqui um fenômeno de realimentação
recíproca entre as figuras dos livros didáticos e uma representação de natureza
topológica da distribuição espacial dos astros do sistema solar, que,
possivelmente, induz as professoras a permanecerem presas a este nível de
representação.
Examinaremos a seguir, em detalhe, outra forte evidência da relevância das
relações topológicas na estruturação da representação do espaço das
professoras, que se manifestará nas características do seu espaço representativo
gráfico.
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TREVISAN et al., 1997, p.10.
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