“Arredondada, possui 2 pólos, realiza 2 movimentos (rotação e translação),
possui mais água do que terra, não possui luz própria, é o 3
o
planeta a partir do
Sol.” (Cin);
“Redonda, achatada nos pólos, 1/4 de terra e 3/4 de água, com movimentos
de rotação e translação.” (Pau).
229
Evidentemente o uso de chavões não é exclusivo do ensino da Astronomia
no ensino fundamental. Muito pelo contrário, o que observamos no nosso caso é
apenas o reflexo do exercício de uma concepção geral de educação, bem
caracterizada por Paulo Freire como sendo uma “educação bancária”
66
, na qual o
processo de ensinar é concebido como um processo de “depositar” conhecimentos
nos alunos, que passivamente os devem receber e obedientemente os devolver
por ocasião das provas, quando é feito o “resgate” do depósito. Uma educação
cuja intenção ideológica de fundo seria a “domesticação” e o enquadramento dos
alunos numa sociedade desigual, à qual não interessa de modo algum o confronto
com a realidade e seu eventual desvelamento, para a qual a formação de
consciências críticas significa uma ameaça (à sua perpetuação), a quem, portanto,
é conveniente manter a escola numa “redoma”, numa “ilha da fantasia”, descolada
da realidade.
É interessante lembrar o depoimento, citado por HARPER et al. (1980), que
exemplifica bem esse desligamento da escola com relação à realidade,
coincidentemente numa situação ligada à observação de um fenômeno
astronômico:
Um certo estudante, tendo lido no jornal que naquele dia ocorreria um
eclipse do Sol, havia preparado um vidro enfumaçado para observá-lo e discutia
com seus colegas, na porta da escola, os riscos de se fazer uma observação do
eclipse a olho nu, quando alguém disse:
“
−
Comigo não há problema, minha classe é do lado de lá, o Sol vai estar do
lado de cá…
É impossível pensar que seria permitido estar às 8 h 39 min em outro lugar
que não a sala de aula, mesmo com um eclipse em curso.
E a sineta (que não lê jornal) tocou às 8 h 25 min levando com ela, em fila, o
rebanho de dóceis carneirinhos, enquanto a Lua encobria o disco alaranjado do
Sol.”
67
Com efeito, parte das professoras de nosso grupo evidenciava possuir
uma concepção do ensino como um processo de doação, de transmissão de
66
FREIRE, 1980b.
67
HARPER et al., 1980, p.62.
230
conhecimento de quem o tem para quem o não tem, que é então “enchido” com o
conhecimento doado, à qual se poderia aplicar também a chamada “metáfora do
balde”
68
: conhecer seria como encher um balde, um reservatório previamente
existente em cada ser humano, talvez inicialmente vazio, com o fluido do
conhecimento pronto, acabado. Isso pôde ser notado, por exemplo, nas respostas
dadas por algumas delas à questão do questionário inicial que perguntava o que
elas gostariam de aprender no curso, onde foi freqüente o uso de termos como
“passar” e “transmitir” conhecimentos, indicativo da concepção subjacente do
ensino como um processo de transmissão.
Porém, em contraposição a essa tendência, algumas professoras dão
evidências de uma certa desconfiança em relação aos chavões, começando a
questionar o seu conteúdo, como nos seguintes exemplos:
Em resposta à pergunta: “como é a Lua?”, feita no questionário inicial, uma
das professoras diz que ela:
“É um satélite natural da Terra e que reflete a luz recebida do Sol.” (Yol);
mas logo abaixo escreve:
“Obs: na minha opinião eu não concordo muito com essa minha resposta.
Pois quando o sol se esconde como pode refletir luz?” (Yol)
Ou seja, primeiramente ela respondeu da forma padrão, como é
tradicionalmente esperado, dizendo que a Lua “é um satélite natural de Terra” e
que ela é um astro iluminado (pelo Sol). Porém, em seguida, com sua observação,
demonstra que não acredita que a última parte dessa resposta seja verdadeira,
pois contradiz o seu bom senso: depois que o Sol já se escondeu, a noite, como
ele ainda pode estar iluminando a Lua?… Ou seja, Yol demonstra que não
compreende a resposta padrão, que desconhece a rede de significados na qual
essa asserção acha-se inserida, no caso, desconhece como é o sistema Sol-
Terra-Lua em proporções reais de tamanhos e distâncias e tem dificuldade de
desprender-se do referencial topocêntrico em que vive, no qual “anoitece”. Mas o
ponto importante a ser observado aqui é que ela já dá mostras de fazer uma
68
A “metáfora do balde” é citada, por exemplo, por MACHADO (1995, p.30).
231
autocrítica, não concordando com sua própria resposta, com o procedimento de
simplesmente dar uma resposta padrão que lhe parece errada e sem sentido.
Em resposta à pergunta: “Como é o sol?”, também do questionário inicial,
outra professora responde que:
“Segundo os livros, é uma estrela porque possui luz própria. Nos livros
didáticos o sol é uma estrela de 5
a
grandeza.” (Dal)
Notamos na resposta de Dal um tom de desconfiança, de “não me
comprometo” com relação à sua própria resposta, baseada em dois chavões
clássicos: “uma estrela é um astro que tem luz própria” e “o Sol é uma estrela de
5
a
grandeza”. Ela deixa bem claro que sua resposta é “segundo os livros”, que é
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