Figura 36: Desenhos da Terra em sua órbita em torno do Sol em posições correspondentes
às quatro estações do ano feitos por: (a) Cin; (b) Der; (c) Ied.
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(a)
(b)
(c)
Figura 37: Desenhos da Terra em sua órbita em torno do Sol em posições correspondentes
às quatro estações do ano feitos por: (a) Pau; (b) Mar; (c) The.
190
É interessante notar que, de acordo com esta perspectiva “de cima”, o eixo
deveria ser visto “do alto”, sobre um dos pólos, e não “de perfil” como ele
invariavelmente aparece representado em todos os desenhos das professoras, o
que indica que há uma certa mistura de perspectivas, que aparece de maneira
mais flagrante nos exemplos mostrados à figura 35, pois neles a órbita desenhada
é circular. Voltaremos a discutir especificamente esta questão na seção deste
capítulo que abordará o espaço representativo gráfico e a questão do realismo
intelectual nos desenhos (seção II.4), onde veremos que a mistura de perspectivas
acha-se ligada a uma representação do espaço de natureza topológica.
Percebe-se, nos desenhos, uma certa dificuldade das professoras em
conseguir indicar de maneira consistente as estações do ano. Algumas (Mar e
Pau, figs. 37(a) e 37(b)) nem sequer as indicaram. Cin (fig. 36(a)) e The (fig. 37(c)),
porém, desenharam diagramas que são consistentes com a explicação da
estações da maneira como elas a concebem, em termos de uma aproximação
maior ou menor do Sol.
Cin indica, através de um ponto, nossa posição no hemisfério Sul da Terra
(o “de baixo”) e seu desenho mostra que este ponto, parece mesmo ficar mais
próximo do Sol no verão e mais distante no inverno. Aliás já podíamos observar
este cuidado de Cin em representar as posições correspondentes ao verão e ao
inverno respectivamente mais próxima e mais distante do Sol em seu desenho da
órbita da Terra feito ainda no módulo anterior, quando ainda não tinha sido pedida
uma indicação das estações, como pode ser visto na fig. 32(a).
The, por sua vez, consegue isso graças a um deslocamento do Sol do
centro do desenho, colocando-o como se fosse num dos focos da elipse
desenhada, que é a mais achatada de todas.
O desenho feito por Ied (fig. 36(c)) também parece mostrar que, nas
posições por ela indicadas como sendo o verão e o inverno, um dos hemisférios
acha-se mais próximo e bem mais voltado para o Sol que o outro, contudo, ao que
parece, isso é feito de maneira muito inconsistente, com o eixo de rotação
desempenhando o papel de equador, como se o próprio eixo estivesse delimitando
os hemisférios (veja fig. 36(c)).
Concluímos assim que as professoras parecem elaborar a sua concepção
sobre o fenômeno das estações do ano com base em dois elementos:
191
- no pressuposto de que o aquecimento maior ou menor da Terra, ou de
certas regiões suas, sempre ocorre em função de uma proximidade maior ou
menor do Sol;
- na sua concepção do movimento de translação da Terra, que fundamenta-
se primordialmente na imagem padrão da Terra em sua órbita em torno do Sol
associada à explicação das estações (fig. 34).
A imagem padrão, por sua vez, é interpretada pelas professoras a sua
maneira
40
:
- como sendo uma representação em que a perspectiva adotada é a “de
cima”, ao longo de uma direção perpendicular ao plano da órbita; em virtude disso,
a forma da órbita é interpretada como sendo, realmente, a de uma elipse com
“achatamento” bem visível e o Sol no centro;
- como indicando as proporções de distâncias e tamanhos que realmente
existem entre os astros, o que parece induzir as professoras à crença de que o Sol
pode ser menor ou apenas um pouco maior que a Terra, de que a Terra acha-se
bem próxima do Sol, a uns poucos diâmetros terrestres, parecendo assim que
alguns pontos de sua superfície podem estar, de fato, bem mais próximos, ou
distantes, do Sol que outros.
A tentativa de estruturação de um modelo explicativo para as estações,
baseada nos dois elementos acima apontados, contudo, nem sempre chega a
bom termo. Das sete professoras que responderam a este módulo apenas duas
(Cin e The) conseguem chegar a modelos consistentes
41
.
No modelo imaginado por Cin (veja fig. 36(a)), o hemisfério em que nos
encontramos (indicado por um ponto) ficaria de fato mais próximo do Sol no verão
e mais afastado no inverno, ocorrendo isso porque:
- o verão e o inverno ocorreriam nas posições em que a Terra estaria sobre
o semi-eixo menor da elipse que representa a sua órbita, quando então a distância
entre o centro da Terra e o do Sol seria menor;
40
Os livros didáticos nunca explicam os diagramas que apresentam.
41
Embora, obviamente, completamente equivocados, pois os pressupostos em que se baseiam são
falsos: não é a proximidade maior ou menor ao Sol que produz diferença no aquecimento dos
hemisférios da Terra, mas sim a inclinação com que os raios solares incidem em sua superfície; a
órbita terrestre é uma elipse que, em virtude de sua pequena excentricidade, é quase uma
circunferência, e o diâmetro terrestre é insignificante em comparação com o distância da Terra ao
Sol (ele é mais de 10.000 vezes menor que o raio da órbita).
192
- a distância entre a Terra e o Sol, nos pontos de maior aproximação (sobre
o semi-eixo menor da elipse), de acordo com o desenho (fig. 36(a)), é de apenas
cerca de duas vezes e meia o diâmetro terrestre;
- o eixo da Terra parece ficar praticamente no plano da órbita, quase
apontando para o Sol nas posições correspondentes ao verão e ao inverno, o que
faz com que um dos hemisférios, em virtude da pequena distância entre ambos
imaginada no modelo, fique bem mais próximo do Sol que o outro.
É interessante notarmos que o modelo imaginado por Cin, inclusive, dá
conta do fato de ser inverno no hemisfério norte quando é verão no sul e vice-
versa, pois quando um dos hemisférios está mais próximo do Sol, o outro está
mais distante e vice-versa, como podemos perceber a partir da figura 36(a).
Já no modelo concebido por The (fig. 37(c)) a órbita da Terra seria uma
elipse de grande excentricidade e o Sol não estaria mais no centro da elipse
(fugindo assim à representação padrão
42
), mas em um de seus focos, o qual, pelo
fato de a elipse ser de grande excentricidade, ficaria realmente bem afastado do
centro. Deste modo, a Terra, em seu movimento de translação, passaria por uma
região de sua órbita em que estaria próxima do Sol, quando então seria verão, e
por outra bem afastada, em que seria inverno (veja fig. 37(c)).
O modelo imaginado por The não dá conta da inversão de estações de um
hemisfério com relação ao outro. Nele, quando é verão, é verão na Terra toda, o
mesmo acontecendo com o inverno.
As demais professoras, porém, parecem não conseguir articular modelos
coerentes a partir do pressuposto sobre o aquecimento da Terra e de sua
concepção de translação, anteriormente mencionados. Embora dissessem que o
fenômeno das estações do ano ocorria devido ao movimento de translação, não
sabiam como efetivamente explicá-lo a partir dela.
Com efeito, ao longo do curso pudemos perceber, em diversos momentos, a
grande expectativa que existia com relação ao aprendizado da explicação das
estações. Essa preocupação, sem dúvida, tinha uma forte razão de ser: boa parte
das professoras profissionalmente abordava este conteúdo com seus alunos. No
questionário inicial, em resposta à pergunta sobre que temas de Astronomia elas
42
Embora em alguns livros didáticos seja possível encontrar uma distorção semelhante, com o Sol
aparecendo bem deslocado do centro da órbita.
193
ensinavam a seus alunos (veja apêndice A), onze das vinte duas professoras que
a responderam citaram as estações do ano.
Podemos assim perceber, a partir desses nossos dados, o grande nó que
deve existir neste ensino: várias professoras que “ensinam” o tema das estações
do ano não sabem formular uma explicação consistente a seu respeito, e, mesmo
aquelas que conseguem articular um modelo ao menos consistente com os
pressupostos que adotam (como Cin e The), “ensinam” algo completamente
distorcido e fora da realidade, uma vez que os pressupostos utilizados são
completamente falsos.
Após a etapa inicial de respostas individuais ao questionário do módulo
sobre as estações do ano, foram desenvolvidas atividades em que foi
intensivamente usado o modelo constituído por uma lâmpada, para representar o
Sol, e uma bola de isopor, para a Terra (veja apêndice C). Durante o seu
desenvolvimento pudemos fazer diversas observações importantes relativas não
especificamente à compreensão das estações, mas às noções espaciais gerais
das professoras, à maneira como elas concebem e trabalham no espaço
tridimensional, sobretudo certas dificuldades ligadas ao uso de referenciais, à
relativização e coordenação de pontos de vista e à visualização de direções e
planos:
−
Algumas professoras tiveram grande dificuldade em conseguir manter o
eixo da Terra fixo, isto é, apontando sempre na mesma direção, enquanto era
reproduzido o movimento de translação da Terra em torno do Sol. Embora ele
fosse mantido no mesmo ângulo em relação à vertical, ao descreverem a órbita,
também faziam com que o eixo girasse, como num movimento de precessão.
Atribuímos este fato a uma dificuldade de perceber o movimento que a
Terra descrevia segundo um referencial externo, fixo em relação ao chão e às
paredes da sala. O que se observava era uma tendência em usar como referencial
o próprio corpo: as pessoas mantinham o eixo numa direção fixa em relação aos
seus braços, à sua cabeça e ombros, porém, ao caminhar ao longo da órbita
curvilínea da Terra, elas não descreviam um movimento de pura translação, mas
também giravam o corpo ao ficar sempre de frente para a direção tangencial à
trajetória (que é exatamente o jeito como normalmente andamos), fazendo com
que o eixo também girasse, junto com o corpo.
194
−
Durante o desenvolvimento das atividades 7.16 e 7.18 (veja apêndice C),
notamos um certa dificuldade das professoras na visualização do plano do
equador terrestre e, sobretudo, do plano do horizonte de um observador na
superfície da Terra
43
, representado por um alfinete, surgindo, por exemplo, muita
dúvida a respeito das posições em que o Sol estaria sobre o plano do equador
(nos equinócios) ou sobre o plano do horizonte (no nascer e ocaso).
Julgamos que esse fato acha-se relacionado a uma falta de familiaridade
com uma visão geométrica do espaço, o que não é uma novidade: em diversos
momentos anteriores de nossa análise, como no levantamento das concepções
acerca do tamanho da Terra, das proporções de tamanho entre Terra, Lua e Sol,
na discussão sobre a inclinação do eixo da Terra, na pouca atenção dada à
posição do plano da órbita da terrestre em relação ao Sol e às proporções e
distâncias no modelo da órbita da Terra, já havíamos encontrado evidências dessa
falta de uso de noções geométricas.
−
Ligada à dificuldade de visualização do plano do horizonte de um
observador na superfície da Terra, representada pela bola de isopor, percebemos
também uma dificuldade de transposição ao ponto de vista deste observador. Por
exemplo, para algumas professoras era difícil perceber em que posição o Sol seria
visto por esta pessoa, representada pelo alfinete, no seu céu, em relação ao seu
horizonte.
Aqui o que está em jogo é a capacidade de coordenação de diferentes
pontos de vista, pois, ao utilizar o modelo, a pessoa vê a Terra de fora, de um
referencial heliocêntrico (pois a lâmpada, representando o Sol, fica sempre
parada), e ela se encontra efetivamente no espaço ao redor da Terra e do Sol
(representado no modelo pelo próprio espaço da sala onde se desenvolve a
atividade), portanto, a pessoa necessita usar a sua visão real, que é a partir do
espaço, para imaginar e perceber qual seria a visão do ponto de vista do alfinete
fincado na bola de isopor. Piaget destaca que essa habilidade espacial de
coordenação de diferentes pontos de vista só costuma ser atingida pelas crianças
a partir dos 9-10 anos de idade
44
, sendo que, o nosso, parece ser um caso
43
O plano do horizonte corresponde ao plano que tangencia a superfície da esfera terrestre no
ponto em que se encontra o observador.
44
PIAGET e INHELDER, 1993, p.227-228.
195
especialmente complexo, pois trata-se de uma coordenação entre uma visão
externa de um corpo esférico de dimensões astronômicas, como a Terra, com a
visão de um ponto sobre sua superfície, do qual, pela enorme diferença de escala
entre nosso próprio tamanho e o da Terra, ela nos aparenta ser um objeto
completamente diferente, plano. Além de uma coordenação de pontos de vista,
também é necessária uma coordenação de escalas de tamanho. Portanto, não é
de estranhar a dificuldade sentida pelas professoras, pois a capacidade de
abstração exigida na atividade proposta é bastante grande
45
.
−
Foi notável o impacto produzido nas professoras pela constatação de que
o sentido em que a Terra gira em seu movimento de rotação é relativo, que ele
depende do ponto de vista, sendo anti-horário quando observado de um ponto
sobre o pólo norte, mas horário quando visto de um ponto sobre o pólo sul. Todas
imaginavam que este sentido deveria ser absoluto e único, ficando
verdadeiramente “chocadas” com a constatação de que, ao mesmo tempo, ela
podia ser considerada como girando num sentido ou no seu oposto, dependendo
do referencial adotado.
Em nossa interpretação, esta reação forte se deve ao fato de as
professoras estarem acostumadas a aplicar uma lógica binária estrita no ensino de
ciências, na qual as coisas devem ser bem definidas, onde elas são ou não são,
onde deve haver certeza e verdade, onde predomina uma tendência à
absolutização do conhecimento, em que se deve ensinar “o que é certo”, onde há
pouco espaço para o relativo, para aquilo que pode ser e não ser ao mesmo
tempo, dependendo do ponto de vista, ou da precisão exigida.
Essa mesma tendência foi encontrada em outros momentos de nosso
trabalho com as professoras, como, por exemplo, quando mostramos, através de
exercício, que a Terra é achatada mas que este achatamento é tão pequeno que,
em termos práticos, ela pode ser considerada esférica, ou quando também
mostramos que a órbita da Terra é uma elipse só que, com uma excentricidade
45
Contudo, como já nos referimos antes, acreditamos que este tipo de atividade, que busca levar a
uma compreensão da articulação existente entre a visão heliocêntrica e a topocêntrica, que busca
mostrar a coerência entre a explicação dos movimentos dos astros num modelo heliocêntrico e o
que é observado no céu, da superfície da Terra, deva ser uma das metas principais do ensino da
Astronomia no 1
o
Grau, pois ilustra de maneira exemplar o pensamento científico, a visão de mundo
que pode ser descortinada através da ciência. Porém, pelo grau de abstração exigido, julgamos que
este tipo de atividade deva ser reservada para as séries finais do ensino fundamental.
196
tão pequena que pode ser considerada praticamente uma circunferência, ou ainda
quando nos referimos que o eixo da Terra mantém uma direção fixa durante o
movimento de translação, mas que, em verdade, realiza um movimento muito lento
de precessão, ou que o próprio plano da órbita também varia de posição, mas
muito lentamente. Percebíamos que elas não estavam acostumadas a lidar com
estes casos, sendo a sua tendência espontânea, como vimos, uma definição clara,
inequívoca, exagerada das coisas: se a Terra era achatada nos pólos, então
concebiam-na com um grande achatamento, se a órbita era elíptica, então a
imaginavam como sendo uma elipse com um “achatamento” bem visível, se o eixo
variava, então ele não podia ser considerado fixo etc.
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