2. Património lagareiro e molinológico
O mosteiro exercia, grosso modo, o monopólio sobre os meios de produção (pisões,
serrações…) e transformação dos frutos da terra (lagares de azeite e vinho, moinhos de vento
e de água). Relativamente à moagem de azeitonas e extração de azeite o foral manuelino de
Alcobaça garantia este direito, com a obrigação do Abade mandar reparar e aparelhar os
lagares, pois não o fazendo os camponeses podiam dar a moer a sua azeitona noutros lugares.
Se os lagares de azeite eram preservados na administração direta, os moinhos de cereais são
ordinariamente dados de foro.
Ao contrário dos moinhos de água que laboram em todas as estações, salvo o risco de
secas ou de enxurradas, os lagares de azeite iniciam o seu ciclo de laboração no mês de
Dezembro, podendo, em anos de safra abundante e de condições climatéricas favoráveis à
maturação da azeitona recuar este prazo a meados do mês de Novembro. O trabalho do lagar
dependia de ser ano de safra, entre três a quatro meses e meio, ou contrassafra, entre dois a
três meses (3).
O funcionamento do lagar não era igual para todas as unidades, variando consoante a
área de olival que lhe estava circunscrita e a capacidade da indústria (número de varas; tração
5
a sangue com gado bovino ou hidráulica…). Quanto à força motriz, a moenda podia ser
hidráulica (neste caso, esta indústria associava‐se, frequentemente, aos moinhos de água
constituindo conjuntos como o da antiga Fervença), de canga bovina, ou em sistema misto,
recorrendo ao gado quando a energia das águas não era suficiente para mover as galgas do
engenho.
A falta de constância das linhas de água que cruzavam o território dos coutos obrigava
a apetrechar os lagares hidráulicos do Mosteiro com moinhos tocados a sangue ou seja por
gado de canga. Era o caso do lagar das Antas (Évora de Alcobaça) e do lagar da Laje (Azenha de
Baixo, Turquel), cujos engenhos eram acionados pela ribeira das Antas. Esta opção estratégica
também foi adotada no lagar da Quinta de Chiqueda (Prazeres de Aljubarrota) (4). Prevenia‐se,
desta maneira, os entraves para a indústria de ocorrências prolongadas de seca ou de
enxurrada.
No caso dos moinhos ao motor hidráulico acrescia a força dos ventos. Mas enquanto
na corrente hidráulica era garantida uma constância, o motor eólico era naturalmente
imprevisível. O trabalho dos moinhos a vento estava comprometida pelo vento suão que
limitava a atividade ao período matinal. A sua laboração restringia‐se aos meses de Julho a
Outubro. Todas estas limitações secundarizavam estes engenhos que serviam de apoio à
moagem nos períodos estivais, nomeadamente quando a rega das novidades subtraía a água
necessária aos casais de mós
Os lagares são instalações amplas, abrigadas do sol e de pé baixo. O piso de terra
batida e a cobertura de telha vã contribuíam para manter uma temperatura baixa e uniforme,
favorável à conservação da azeitona entulhada e do azeite arrecadado nas talhas cerâmicas e
nas pias de pedra lioz. Independentemente do concurso do motor de água ou de sangue que
animava a moenda, as prensas dos lagares do Mosteiro eram todas do sistema de vara. As
maiores instalações possuíam oito varas, como é o caso do lagar da Ataíja de Cima (5), do lagar
da Lagoa Ereira (6) e do lagar da Fervença, ao qual foram acrescentadas duas varas (7). Os
lagares que dispunham de mais de quatro varas possuíam sempre dois moinhos. Os moinhos
distinguiam‐se pela força motriz hidráulica ou animal, pela capacidade de receber azeitona do
seu pio, pelo número de galgas (entre duas a quatro), etc.
Idêntica situação de solidez do edificado carateriza os engenhos de moagem. Os
moinhos do mosteiro são construções sólidas de pedra crua ou rebocada com cobertura de
telha. Estas unidades destacam‐se pelo espaço privilegiado do seu assentamento, pela
dimensão do edifício e número de “engenhos correntes e moentes”, mobilizando em média
três a quatro casais de mós alveiras e segundeiras. As valas dos moinhos funcionam
solidariamente, conduzindo as águas a outros engenhos, como lagares de azeite, assim como,
graças a derivações no seu ramal, servem a rega dos campos. A fim de prevenir o ímpeto das
águas ou facilitar a sua guarda o leito do rio é servido de açudes que não raras vezes servem
de viveiros de peixes e de criação de aves que beneficiam do alimpalho dos moinhos.
Os períodos destinados à limpeza das valas podiam implicar a redução das rendas ou
foros. Esta contração da renda também se verificava no período das regas do milho e das
hortas que ocorriam de Maio a Setembro.
6
A azeitona que não tinha vez no moinho era arrecadada em tulhas de pedra ou
madeira, amontoada e salgada. O monopólio do lagar implicava que a azeitona das
propriedades monásticas fosse a primeira a ser laborada não se depreciando nas tulhas. Já os
cereais, arrecadados secos, esperavam nos celeiros e arcas as necessidades de consumo.
Para fabricar o azeite pagava‐se maquia (prestação fixa que representava a dízima do
melhor azeite), entre outros encargos, conforme o uso e costume da região, dos quais se
contam a entrega de cereais para ração das juntas de gado ao serviço do engenho, de géneros
para os lagareiros, de lenha para a caldeira, de azeite para a iluminação do lagar, etc. A estes
tributos acrescia o direito senhorial do quinto da azeitona no pé da árvore. Os cereais eram
igualmente taxados com o quarto, a dízima, a maquia do moinho.
Para arrecadar o azeite utilizavam‐se depósitos de cantaria e vasos cerâmicos. No
território dos coutos a olaria era preterida pela pedra (8).
Os foros e rendas dos moinhos estão relacionados com o estado das instalações, o
número de casais de pedras moentes, a natureza do curso de água, a localização e a inclusão
de logradouros, o que incorpora o pagamento do dízimo das novidades. O foro numa
economia debilmente monetarizada implicava a entrega de cereais, leguminosas secas,
animais (galinhas, galos capões, carneiros e porcos), alguns géneros, como cera e azeite. O
cereal transportado para os celeiros da Ordem devia vir limpo e ser da terra e não de tulha, ou
seja, cereal do ano.
Passamos, de seguida, a tratar algum do património industrial que, não obstante o
estado de ruína, poderia ser classificado, intervencionado e conservado consoante o parecer e
suporte técnico. Este património sobre o qual vou tecer uma breve história de vida podia vir a
integrar uma rede de núcleos museológicos estabelecendo uma ponte entre o território e o
edificado monástico, situação, aliás, que o projeto não concretizado do Museu dos Coutos de
Alcobaça já parcialmente contemplava (FIGUEIREDO, 1996:40‐51). Nesta perspetiva reforçar‐
se‐ia a ligação entre o Mosteiro (Património Mundial da Humanidade a partir de 1989) com o
antigo território coutado, nomeadamente com o património rústico, condição indispensável
para cimentar e fornecer conteúdo à própria narrativa do monumento, ao mesmo tempo que
se carreia maior inteligibilidade e se esclarecem e fortificam os laços identitários e
diferenciadores da região de Alcobaça, assim como se gera maior lastro para uma aplicação no
terreno de uma economia de matriz cultural alicerçada em torno da marca de Cister.
A obsolescência tecnológica resultou no abandono destas instalações protoindustriais.
Assim aconteceu aos lagares de azeite sobreviveram que à derrocada do regime senhorial. A
maior parte dos moinhos de cereais foi tomada por novas instalações industriais a fim de se
apropriarem do apetecível motor hidráulico, indústrias essas que, por seu turno, também já
foram desativadas, como é o caso da Fábrica de Fiação e Tecidos da Fervença. A escassez
patrimonial traduz, de facto, a erosão irreversível do tempo, emagrecendo significativamente
os elos de ligação que poderiam não só enriquecer o discurso, como balizar a atuação do
Mosteiro como eixo central e aglutinador de um corpo patrimonial disperso. Convém pois
inventariar, classificar e reabilitar este património arquitetónico rural, peças que dão
testemunho das infraestruturas produtivas e do aparato tecnológico, assim como da
arquitetura económica e social da região, das relações sociais de produção…
7
Figura1. Casa do Monge lagareiro, Ataíja de Cima, S. Vicente de Aljubarrota. Fonte: A Maduro
Começamos pela mais emblemática unidade industrial, a Casa do Monge Lagareiro, a
única instalação que abordamos que foi classificada como imóvel de interesse público, o que
não impediu o acentuado estado de ruína e degradação. Joaquim Vieira Natividade que ainda
muito jovem conheceu a tapada onde se localiza o complexo lagareiro descreve o espaço:
“Dentro de uma cerca, na vizinhança da Lagoa Ruiva, erguia‐se a vasta edificação com ampla
alpendrada em cujas paredes se abriam, graciosamente, os nichos do pombal. Oito varas
gigantescas, quatro de cada lado, peso contra peso, ocupavam o primeiro compartimento
(21,80 m x 11,10 m). Seguia‐se‐lhe a casa dos moinhos (35, 50 m x 9,50 m) com as tulhas para
a azeitona, numerosas mas de pequenas divisões, em parte embebidas nas grossas paredes.
Os estábulos ocupavam outro compartimento separado. Junto ao lagar, e voltada a nascente,
levantava‐se a residência do frade‐lagareiro, na fachada da qual ainda hoje se veem as armas
do Mosteiro, de curioso desenho. No rés‐do‐chão deste corpo, guardava‐se o azeite em
grandes pias de pedra” NATIVIDADE, sd:70). A sua implantação está de portas meias com a
Lagoa Ruiva, cuja água era indispensável para abastecer as quatro caldeiras do lagar
destinadas à escalda e queima das azeitonas dadas durante a prensagem. A água era aliás
encanada para uma casa do poço (9).
Esta unidade industrial será eventualmente coeva do olival do Santíssimo, olival
mandado chantar a partir de meados do século XVII. Assegurava‐se assim os meios técnicos
para lavrar a safra do majestoso olival que ao termo de vida do instituto monástico contava
com cerca de 18.000 pés (10). Sabemos que o lagar já laborava em 1714 no âmbito de uma
sentença da coroa contra os oficiais da câmara da vila de Aljubarrota que tinham decretado
proibir que se desfizesse azeitona no lagar (11).O imóvel conheceu reparações no triénio de
1772‐1776 segundo consta nas notas da administração do Santíssimo Sacramento do Real
Mosteiro de Alcobaça, a quem o imóvel estava adstrito: “Despendi no concerto das cazas de
Atahije, lagares, e em cal, jornaes de pedreiros, e carpinteiros, e madeira, tudo por vários
preços, trinta e outo mil sento e secenta réis” (12). Outras obras voltam a ser realizadas,
nomeadamente “com pedreiros e serventes em vários concertos, portaes novos para o
armazém e carreto da cal (…) ” (13).
A modernidade das instalações verifica‐se na separação entre as áreas dedicadas aos
moinhos de sangue (canga bovina) de três galgas, as prensas de vara (acompanhadas pelas
8
oito tarefas de barro terçado para recolher o azeite) e as pias que guardam o azeite depois de
arrancado às tarefas. O lagar possuía ainda três palheiros (de fora, da entrada e do meio) e
estábulos para os animais que serviam nos engenhos e carreavam a azeitona. A casa do monge
lagareiro, monge converso que supervisionava as artes de laboração do azeite e a
contabilidade do lagar, constituía outro corpo separado do lagar e nos baixos deste imóvel
situava‐se o armazém de azeite. As condições físicas de excelência que este lagar exibia e que
se inscreviam nos ditames da racionalidade dos novos tempos e, claro está, nos conselhos
contidos nos tratados agronómicos, nomeadamente do académico Dalla Bella nas suas
Compartilhe com seus amigos: |