Key-words: Cistercian monastery;
industrial heritage
1. Introdução
Entre os séculos XVII e XVIII o senhorio alcobacense conheceu uma profunda
transformação agrária que ampliou a renda e modificou a paisagem. Os monges exibem não só
um pensamento coeso e estruturado sobre o território, como um notável espírito de iniciativa,
de ordenamento e gestão do espaço em áreas culturais, tanto em função das aptidões
produtivas do solo e da adaptação cultural das plantas, como da capacidade/incapacidade de
regadio, assim como uma superior vontade de mercantilização da economia do domínio
senhorial e numa rutura decisiva com os critérios estritos da autarcia. Verifica‐se, na realidade,
um conserto ente a manutenção de culturas de autossuficiência (dinâmica senhorial) e de
mercado (dinâmica capitalista). A inovação manifesta‐se não só na adesão a novas culturas,
como em novos afolhamentos e rotações culturais, na racionalidade e compasso que
acompanha os diferentes frutos da terra, no termo da promiscuidade cultural entre vinhas e
árvores de fruto e culturas arvenses de consociação, na plantação de pomares estremes de
espinho, pevide e caroço, no aprimorar dos métodos e técnicas de trabalho da terra que
permitem suprimir o pousio e alcançar o teto da produtividade do Antigo Regime.
Estes monges agrónomos conduzem a partir das granjas/quintas uma verdadeira
revolução cultural aproveitando áreas marginais ao trato agrícola. A capacidade de
transformar o espaço selvagem num espaço produtivo tem eco tanto nos cronistas da Ordem,
como nos viajantes ilustrados que estanciam na hospedaria monástica. Nestes curtos relatos
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dá‐se conta do estado da arte agrícola no território dos coutos que, por sinal, era evocada
como exemplo dado o estado geral de abandono do país. Esta revolução na estrutura agrária
não só transforma a paisagem e a respetiva tela cultural, como implica uma política de atracão
de gentes para os trabalhos da terra.
Esta nova arquitetura produtiva centra‐se nos territórios de fronteira dos coutos. No
extenso plaino, que serve de regaço à Serra dos Candeeiros, de características cársicas e
povoado por matos e floresta de folhosas, os monges disseminam, a partir de meados do
século XVII e ao longo do século XVIII, a cultura da oliveira obedecendo as plantações a um
critério de compasso, de que são exemplos notáveis os olivais da Quinta de Val de Ventos com
60.000 pés e os olivais do Santíssimo das Ataíjas com cerca de 18.000 árvores. As carreiras de
maior dimensão podiam conter entre uma a duas centenas de árvores. A orientação desta
malha quadriculada respondia a critérios climáticos de modo a otimizar o benefício da
exposição solar, evitar o ensombramento de umas árvores pelas outras, proteger de ventos
dominantes. O traçado simétrico das plantações facilitava os trabalhos culturais,
nomeadamente as lavouras de pão e permitia o trânsito de carros de bois para escoar a safra
da azeitona. Para dar vazão aos milhares de alqueires de azeitona que resultam das extensas
plantações são mandados levantar pelo Mosteiro vários lagares de azeite.
No domínio do litoral, aproveitando as férteis campinas, a planta do milho americano
torna‐se soberana entrando em consociação com o feijão branco. A difusão do milho maiz nas
terras de campo do Valado, Cela e Alfeizerão faz multiplicar as tulhas e arcas de arrecadação,
excedente generoso que induz alterações na dieta alimentar dos povos dos coutos e favorece
os registos demográficos. Frei Manuel de Figueiredo na resposta às Perguntas de Agricultura
dirigidas aos lavradores de Portugal (1787), ao pronunciar‐se sobre as produções e consumos
da comarca de Alcobaça, refere que “he muito o milho grosso, que as vezes sobe a preço caro,
por ser o género, de que mais se sustentão estes povos” (MADURO, 2013:340). O pão dos
camponeses passa a ser a broa de milho. O milho também entrava na dieta alimentar sob a
forma de sopas (as migas) e papas. O consumo do trigo pelas classes populares restringia‐se ao
período de espera do milho novo. O novo cereal também passa a entrar na dieta de suínos no
período de engorda e amamentação facilitando a estabulação animal.
Com determinação e conhecimento tecnológico o mosteiro manda proceder ao
enxugo das terras de campo suprimindo pauis, ao desvio e reordenação do leito dos cursos
fluviais, à distribuição por meio de valas e enguieiros das águas de rega, com portas de maré e
a dragagem da foz do rio da Abadia evita‐se o avanço do mar e a salinização dos campos.
Graças a estas intervenções pesadas de engenharia hidráulica conquistam‐se terras para a
lavoura e multiplicam‐se os frutos. Num arranjo feliz plantam‐se florestas de pinho para travar
o movimento das areias e os agrestes ventos marítimos, confluência de fatores que poderia
levar a perder as culturas. Inovadores por natureza, os cistercienses, a escassos anos de
abandonarem a sua casa secular (década de 20 do século XIX), ensaiam a cultura do arroz na
Quinta do Campo e de Alfeizerão, cultura que pela fadiga que impunha à terra vai alternar com
o maiz em ciclos de dois a três anos (MADURO, 2011:247).
A excelência da organização do espaço agrário tem eco nos relatos de viagem
setecentistas e oitocentistas dos estrangeiros. William Beckford, falando das terras de campo,
refere que “aqui tudo sorria; cada nesga de terra era aproveitada ao máximo, graças à
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perfeição e bom uso do sistema lombardo de irrigação. Cada casa era manifestamente um
núcleo de industriosa prosperidade, com o seu quintal bem cercado de muros e profusamente
embelezado pelas abóboras e melões, com as suas bicas de água abundante, as suas vinhas,
figueiras e espaldeiras de romãs” (BECKFORD, 1997:92). No mesmo sentido de
desenvolvimento se pronuncia William Morgan Kinsey: “The road hence to the Comarca town
of Alcobaça led us through a well‐cultivated country abounding with woods and green
meadows, and producing large quantities of corn and Great variety of fruits (…) The system of
agriculture pursued in this district is excellent, and may be entirely attributed to the superior
knowledge of Bernardine brethren in all masters connected with rural economy” (KINSEY,
1829:440).
A vitória do milho grosso produziu transformações culturais assinaláveis no território
dos coutos. O novo cereal trouxe para a ribalta a prática do regadio que reforça a colheita das
searas, operou transformações assinaláveis nos sistemas e tecnologias de debulha, as eiras
redondas trigueiras de piso de terra batido dão lugar às eiras quadrangulares lajeadas
importadas do noroeste, o instrumental de debulha também se modifica em vez das récuas de
gado e dos trilhos utilizados no trigo domina o malho ou mangual para percutir as pesadas
espigas e soltar o grão, nos cómodos de seca (espigueiros fixos e móveis e telheiros de apoio) e
arrecadação (multiplicam‐se os celeiros e tulhas para fazer face aos índices de produtividade
da planta estimados ente trinta a trinta e dois alqueires por alqueire semeado), dá primazia
nos engenhos de moagem às pedras segundeiras (1), reordena a hierarquia na paleta cultural
relegando o trigo para segunda posição, assim como os tipos de rotação e consociação com
outras plantas e vitima os milhos miúdos (os milhos de passarinho). Por meados do século XIX,
os concelhos que pertencem ao distrito de Leiria, não cultivam o milho‐miúdo, semeando
exclusivamente a variedade branca e amarela do milho grosso (2). Em 1865, a comarca produz
400.000 alqueires de milho (a colheita de trigo só representa 1/5).
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