Estudos de Religião, Ano XXI, n. 33, 121-135, jul/dez 2007
eliminar o amor-paixão do casamento e a impor à mulher obediência ao
marido. O marido não estava lá para fazer amor, mas para comandar. A maior
parte das esposas tinha um marido que nem sempre fora desejado, que lhes
era imposto sem consulta. Esse marido era chefe e mestre, a quem mais se
sujeitavam do que ao pai e irmãos. O lugar do amor restringia-se, portanto,
à literatura. Literatura onde, ao contrário, a mulher reinava e era adorada,
distribuía ou recusava favores livremente. Mas sempre no cenário onde se
bifurcavam dois amores: o de fora e o de dentro do matrimônio. E o de fora,
levando, invariavelmente, a dolorosas dificuldades.
No teatro elisabetano, por exemplo, quando se apresentava a idéia de um
poderoso amor, ao mesmo tempo carnal e espiritual, ligava-se diretamente ao
tema da paixão e da morte. Lembram-se de Romeu e Julieta? A maior parte
dos autores dos tempos modernos, dos poetas de corte aos moralistas popu-
lares, todos bordaram, com preciosismo ou realismo, variações sobre estes
pontos. Até fundindo-os. Mas há uma tônica quase permanente: o poder do
amor, a atração mútua dos corpos ou o perigo representado pelos charmes
femininos, e, last, but not least, o castigo final.
Existem, sem dúvida, exceções. Lope de Vega, que dominou o teatro do
século de ouro espanhol, deu importante lugar ao amor em suas múltiplas
comédias. Ele figura ao lado da busca pelo prazer, característica de seu tempo.
Era o prazer o elemento que permitia o triunfo do casal sobre todos os
obstáculos jurídicos ou humanos que se opunham ao seu desabrochar. Mas
a maioria dos escritores fica com Cervantes que em suas Novelas exemplares, de
1613, preferia celebrar os amores honestos e pudicos, mesmo os de uma
pequena cigana ou de uma servente de albergue, às paixões sem freios.
Os progressos da repressão sexual tiveram algumas conseqüências no-
táveis. Uma delas foi a de levar a sociedade ocidental, em princípio condenada
a respeitar a decência e o pudor, à obsessão erótica ligada, muitas vezes, ao
culto clandestino da pornografia. O início do Renascimento expôs, sem dis-
farces, as virtudes do sexo assim como o charme de seus preparativos. E o
fez sem cerimônias. Os aspectos carnais do amor se exprimiam com franque-
za radical; os poetas que buscavam sem falso pudor as alegrias do leito ou do
beijo e confessavam preferi-los às carantonhas de devoção pareciam, na sua
sinceridade, escandalosos. Aproveitando-se da revalorização da Antiguidade,
artistas variados tentavam unir a inconstância do apetite erótico com a filo-
sofia de que era preciso viver o momento presente.
As diversas etapas do amor sensual ou do desespero amoroso nunca fo-
ram tão bem cantadas como o fizeram, por exemplo, Ronsard e Shakespeare.
São autores que celebraram o êxtase nascido da satisfação do desejo. O
Renascimento italiano, por sua vez, inaugurou o culto alegre e realista da licença
128 Mary del Priore
Compartilhe com seus amigos: |