Estudos de Religião, Ano XXI, n. 33, 121-135, jul/dez 2007
Próximo, às vezes, de um erotismo ao mesmo tempo erudito e interiorizado,
seu conteúdo se alimentou a partir do século dezesseis de certa filosofia então
muito na moda: o neoplatonismo. Mas vejamos como isto aconteceu.
Ao chegar a Idade Moderna, três mudanças fundamentais tiveram lugar
na sociedade ocidental: o Estado se centralizou e seus tentáculos começaram
a invadir áreas onde ele nunca, antes, penetrara. Inclusive a vida privada.
Dentre alguns exemplos desta interferência poderíamos destacar o estimulo
à oficialização dos casamentos e a perseguição aos celibatários; o reforço à
autoridade dos maridos que passaram a exercer uma espécie de monarquia
doméstica; a incapacidade jurídica das esposas a quem não era consentido
realizar nenhum ato sem autorização de seus maridos. Quanto aos filhos,
estes não podiam casar sem autorização dos pais.
Segunda mudança: as reformas protestante e católica, além de incentivar
novas formas de devoção e piedade, tornaram suas igrejas mais vigilantes
sobre a moral de seus fiéis. Entre os católicos, a Inquisição perseguia, além
de heresias, crimes “sexuais”, como a sodomia, o homossexualismo e as
posições do coito julgadas pecaminosas. E, por fim, a divulgação da leitura e
do livro tornou os indivíduos mais aptos a se desembaraçar de velhas amarras.
Mas, a literatura, também, os deixou mais sujeitos a alimentar representações
comuns e compartilhadas sobre temas como o pecado, o amor ou a paixão.
Dois exemplos da influência da leitura: foi graças à imprensa que o fi-
lósofo Marsílio Ficino, tradutor e propagandista das idéias de Platão, impôs
as especulações do filósofo grego à Europa refinada. Suas obras foram
traduzidas, lidas e comentadas em vários países europeus. Ele rememorou os
comentários de Platão sobre o mito da androginia, para concluir que o amor
é a reunião de duas partes, antes separadas. Ele é o reencontro de duas antigas
e caras metades. A unidade readquirida não é, contudo, perfeita. Esta nova
unidade é marcada pelo estranhamento e por cicatrizes da separação. Em
1541, graças ao sucesso dos Dialogi di amore – Diálogos de amor – de Leon,
o hebreu, belas mulheres e audazes cavaleiros aprendem a dissertar sobre o
valor universal da paixão espiritual, cuidadosamente distinta do triste amor
carnal. Mas o tal amor que se lia nos livros seria só sinônimo de desprendi-
mento e frustração?
Aparentemente, sim. O neoplatonismo do Renascimento teria sido para
as elites cultas meio de esquecer e empurrar para baixo do tapete a repressão
sexual a qual elas deviam se habituar. Não se casar jamais por prazer e não
casar jamais sem o consentimento daqueles a quem se devia obediência, era
lei nas casas aristocráticas. O casamento era um negócio de longa duração que
não podia começar sem a opinião de parentes e amigos. A bem dizer, atrás da
concepção cristã do casamento havia a hebraica. Ambas preocupadas em
Pequena história de amor conjugal no Ocidente Moderno
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