Estudos de Religião, Ano XXI, n. 33, 121-135, jul/dez 2007
É certo que a ideologia moral expressa pelos estóicos – os que crêem
que a felicidade está na virtude -, durante os primeiros séculos de nossa era,
antes da expansão do cristianismo, favorecia a procriação, a propagação da
espécie, como fim e justificativa do casamento. Muito amor, no entender de
Jerônimo, confessor e doutor da Igreja, era justamente o amor sem reservas
nem limites. E muito amor era ruim. Este era o tipo de amor nefasto, pois
equivalente à paixão dos amantes fora do casamento. O homem sábio devia
amar sua mulher com discernimento e não com paixão. E, conseqüentemente,
controlar seu desejo e não se deixar levar pelo prazer do sexo. “Nada é mais
impuro do que amar a mulher como amante. Que eles se apresentem às suas
mulheres como maridos e não, amantes”. O tom de Jerônimo é de um man-
damento. A velha e banal fórmula do “amor contido” no casamento e do
“amor paixão” fora do casamento, inicialmente formulada pelo estoicismo,
não como prática, mas como regra de um código moral, era aí aproveitada.
Nos textos do apóstolo Paulo, o amor fora do casamento, a fornicatio, a
immunditia
é implacavelmente condenado. A principal razão do matrimônio era
responder ao desejo físico dos esposos pela obrigação recíproca. A este com-
promisso chamavam debitum, ou débito conjugal, espécie de moeda a ser paga
em relações sexuais entre marido e mulher. É evidente que de tal perspectiva
moral, o debitum devia ser diferente dos jogos violentos da paixão e do erotismo.
A jurisdição deste termo traduzia bem os limites do ato: higiênico, con-
tido, quase cirúrgico. Tratava-se, sobretudo, de diminuir o desejo e não mais
de aumentá-lo ou de fazê-lo durar. No lugar do amor erotizado, o amor ágape
ou caritas. É a Paulo que devemos a formulação mais precisa desta tese nova,
porém, mal explicada pelos evangelhos. Nela, o apóstolo lembra aos homens
que Deus os ama, mesmo não sendo amado. Que o dom gratuito deste amor
paterno é o sacrifício do filho, o Cristo – logo, dom que é renúncia e
oferenda. E que o amor do próximo, seja ele, amigo ou inimigo, significa a
adesão ao batismo cristão. Adesão ao pai bíblico. Deste ponto de vista, Deus
é amor. E amor que visa à ressurreição, por meio do corpo puro, imaculado
e isento de pecado. É o triunfo da idealização pela sublimação do sofrimento
e pela destruição da carne. Amar é, portanto, ter o dom da caridade, logo, do
ágape, mas não só. É possuir, igualmente, o dom da confiança, da solicitude,
da decência, da verdade. Caso contrário, o indivíduo, mesmo imbuído de
outras qualidades, não é nada. “Se não tenho amor, nada sou”, diz São Paulo.
E a perfeição desta realidade plena do homem amoroso é representada por
Deus, ele mesmo. Fora disto, como disse a religiosa portuguesa, sóror
Mariana de Alcoforado, suposta autora de belas cartas de amor que teriam
sido escritas no século dezoito, “todo o resto é nada”.
Pequena história de amor conjugal no Ocidente Moderno
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