Estudos de Religião, Ano XXI, n. 33, 121-135, jul/dez 2007
tantos séculos. No passado, seus objetos e estímulos afetivos seriam diferentes
dos nossos, assim como diversas eram as condutas amorosas. O status do amor
– e esta é sua tese -, era, então, bem mais complexo do que hoje. Havia quem
cantasse o amor platônico e quem cantasse o carnal: coisas diferentes e sepa-
radas. E que o amor casto dentro do casamento teria levado ao amor paixão,
fora dele. Este processo teria se consolidado com a ajuda de moralistas, ecle-
siásticos ou laicos, cuja tendência era condenar a paixão amorosa sob todas as
suas formas, sem preocupação de distinguir, como tanto fazemos hoje, “o
verdadeiro amor”, do simples desejo. A Igreja, por seu lado, condenava todo
amor profano, considerando-o antítese do amor sagrado. Ela insistia particu-
larmente sobre os perigos do excesso de amor entre esposos.
Ao longo da Idade Média, enquanto os poetas cantavam amores impos-
síveis, os teólogos repetiam o aforismo de são Jerônimo: “Adúltero é também
o marido muito ardente por sua mulher”. Mas por que maridos não podiam
amar apaixonadamente suas esposas? Porque, para a antiga moral cristã ins-
pirada no estoicismo, a sexualidade nos fora dada exclusivamente para pro-
criar. Era perverter a obra divina servir-se dela por outras razões. Santo
Agostinho, no século V, resumia o casamento à procriação e ao cuidado com
os filhos. O prazer puro e simples era “concupiscência da carne”, esterilidade
que submetia a razão aos sentidos. E pior: na sua opinião a força do desejo
não viria de Deus, mas de Satanás.
Conclusão: o casamento só era legítimo se colocado a serviço da prole,
da família. É coisa muito recente a Igreja católica exaltar o amor conjugal.
Para muitos teólogos da atualidade, “as relações conjugais são imorais quando
não há mais amor”. Elas não podem ser outra coisa que “expressões de
amor”. Mas isto, hoje. Pois no passado, o casamento estava longe de ser o
lugar de encontro amoroso entre homens e mulheres.
Durante a Idade Moderna, outra definitiva transformação se acrescentou
a esta tendência. Com o surgimento do contrato que passou a exigir a presen-
ça de um padre e de testemunhas, a obrigatoriedade da promessa dos esposos,
mais a presença do dote, das mãos sobrepostas, do anel e do princípio de
indissolubilidade, as fronteiras entre as exigências do sacramento e as outras
formas de convívio afetivo foram ficando cada vez maiores. Criou-se uma
dicotomia. Por um lado, sentimento regido por normas cada vez mais orga-
nizadas além de critérios práticos de escolha do cônjuge: o chamado “bem
querer amistoso”. De outro, o sentimento ditado por razões subjetivas, por
vezes, inexplicáveis. Ou seja, lentamente se construía um tipo de amor dentro
do casamento e, outro, fora. Mas olhemos um pouquinho para trás para
entender de que tipo de sentimento se está falando.
124 Mary del Priore
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